Do Desejo     
                                       
                                             Quem és? Perguntei ao
desejo. 
                                       
                                             Respondeu: lava. Depois
pó. Depois nada.  
I 
Porque há desejo em mim, é tudo
cintilância. 
Antes, o cotidiano era um pensar
alturas 
Buscando Aquele Outro decantado 
Surdo à minha humana ladradura.  
Visgo e suor, pois nunca se faziam. 
Hoje, de carne e osso, laborioso,
lascivo 
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos 
Quando havia o jardim aqui ao lado. 
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo 
Ao invés de ganir diante do Nada.  
II 
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de
máscaras. 
Que desenhos e rictus na tua cara 
Como os frisos veementes dos tapetes
antigos. 
Que sombrio te tornas se repito 
O sinuoso caminho que persigo: um
desejo 
Sem dono, um adorar-te vívido mas
livre. 
E que escura me faço se abocanhas de
mim 
Palavras e resíduos. Me vêm fomes 
Agonias de grandes espessuras,
embaçadas luas 
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te. 
Cordura.  
Crueldade. 
III 
Colada à tua boca a minha desordem.  
O meu vasto querer. 
O incompossível se fazendo ordem. 
Colada à tua boca, mas descomedida 
Árdua 
Construtor de ilusões examino-te
sôfrega 
Como se fosses morrer colado à minha
boca. 
Como se fosse nascer 
E tu fosses o dia magnânimo 
Eu te sorvo extremada à luz do
amanhecer. 
IV 
Se eu disser que vi um pássaro 
Sobre o teu sexo, deverias crer? 
E se não for verdade, em nada mudará
o Universo. 
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável  
Deverias crer? E se não for verdade 
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos 
Impudência, pejo. E agora digo que há
um pássaro 
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia 
Ossos, sangue, carne, o agora 
E tudo isso em nós que se fará
disforme? 
V 
Existe a noite, e existe o breu.  
Noite é o velado coração de Deus 
Esse que por pudor não mais procuro. 
Breu é quando tu te afastas ou dizes 
Que viajas, e um sol de gelo 
Petrifica-me a cara e desobriga-me 
De fidelidade e de conjura. O desejo 
Esse da carne, a mim não me faz medo. 
Assim como me veio, também não me
avassala
Sabes por quê? Lutei com Aquele. 
E dele também não fui lacaia.  
VI 
Aquele Outro não via minha muita
amplidão. 
Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.
 
E agora vã, te pareço soberba,
magnífica 
E fodes como quem morre a última
conquista 
E ardes como desejei arder de
santidade. 
(E há luz na tua carne e tu palpitas.)
Ah, porque me vejo vasta e inflexível 
Desejando um desejo vizinhante 
De uma Fome irada e obsessiva? 
VII 
Lembra-te que há um querer doloroso 
E de fastio a que chamam de amor. 
E outro de tulipas e de espelhos 
Licencioso, indigno, a que chamam
desejo. 
Há o caminhar um descaminho, um
arrastar-se 
Em direção aos ventos, aos açoites 
E um único extraordinário turbilhão.
Porque me queres sempre nos espelhos 
Naquele descaminhar, no pó dos
impossíveis 
Se só me quero viva nas tuas veias? 
VIII 
Se te ausentas há paredes em mim.  
Friez de ruas duras 
E um desvanecimento trêmulo de
avencas. 
Então me amas? te pões a perguntar. 
E eu repito que há paredes, friez 
Há ,olimentos, e nem por isso há
chama. 
DESEJO é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, em Caracol de Fogo.
DESEJO é uma palavra com a vivez do
sangue 
E outra com a ferocidade de Um só
Amante. 
DESEJO é Outro. Voragem que me habita.
IX 
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama? 
Disse palavras líquidas, deleitosas,
ásperas  
Obscenas, porque era assim que
gostávamos. 
Mas não menti gozo prazer lascívia 
Nem omiti que a alma está além,
buscando 
Aquele Outro. E te repito: por que
haverias 
De querer minha alma na tua cama? 
Jubila-te da memória de coitos e
acertos. 
Ou tenta-me de novo. Obriga-me. 
X 
Pulsas como se fossem de carne as
borboletas. 
E o que vem a ser isso? perguntas. 
Digo que assim há de começar o meu
poema. 
Então te queixas que nunca estou
contigo 
Que de improviso lanço versos ao ar 
Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles
Que apetecia a Talleyrand cuidar. 
Ou ainda quando grito ou desfaleço 
Advinhas sorrisos, códigos, conluios 
Dizes que os devo ter nos meus avessos.
Pois pode ser. 
Para pensar o Outro, eu deliro ou
versejo. 
Pensá-LO é gozo. Então não sabes?
INCORPÓREO É O DESEJO. 
