quarta-feira, 26 de março de 2014

Tradução, traduções (verdades e traições). brevíssima reflexão sobre uma falsa questão



                          Giorgio De Chirico "As Musas Inquietas"

     Exemplo, e não tese, sobre (dando um valente e convicto pontapé no termo "problemática"...) como deve  ser feita a tradução (principalmente a da poesia) "afixo" duas versões (traduções) do poema "Sobre tradução de poesia" de Zbigniew Herbert (1924-1998):

Sobre tradução de poesia -

Zumbindo um besouro pousa
numa flor e encurva
o caule delgado
e anda por entre filas de pétalas folhas
de dicionários
e vai direito ao centro
do aroma e da doçura
e embora transtornado perca
o sentido do gosto
continua
até bater com a cabeça
no pistilo amarelo

e agora o difícil o mais extremo
penetrar floralmente através
dos cálices até
à raiz e depois bêbado e glorioso
zumbir forte:
penetrei dentro dentro dentro
e mostrar aos cépticos a cabeça
coberta de ouro
de pólen

Tradução de Herberto Helder "OUOLOF" poemas mudados para português por Herberto Helder, (Assírio & Alvim, Lisboa 1997).




SOBRE A TRADUÇÃO DE POESIA

Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo

e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen

(trad. de Jorge Sousa Braga (a partir da versão inglesa)  "Zbigniew Herbert, Escolhido pelas Estrelas, antologia poética", (Assírio & Alvim, Lisboa 2009)



   Não foi inocente a escolha do poema (considerando a ironia do título), ilustrando na perfeição o meu ponto de vista (que não tese) e justificando o já referido pontapé.

    O que aqui temos são duas abordagens que, se assumidas, se equivalem nas razões. A de Herberto Helder, radical e manifesta (donde a expressão com que, habitualmente, classifica ou intitula, as suas traduções: "poemas mudados para português") que quase poderia ser uma espécie de poema do poema.  A de Jorge Sousa Braga, mais "modesta" nas intenções (e repare-se que neste caso é um poema em 3ª mão (uma vez que é feita a partir da versão/ tradução inglesa), mas honesta e de geografia muitíssimo mais vasta, uma vez que, dependendo do tradutor, vai da tentativa de captar o "espírito", a "musicalidade", (e mais umas incontáveis subjectividades), até à chamada tradução "literal".

   Sobre a justeza ou acerto da práctica, discorram académicos, profissionais ou diletantes...

   A mim basta-me a comezinha honestidade: a clareza do critério adoptado e a sua assunção.