sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Tempo
de passarmos o ano,
ou dos anos passarem (por nós e nós por ele)
ou tudo ser o mesmo
até deixar de ser
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Tripas à Cafreal (4... e última)
IV
Acabado o almoço fiz-me à cruzada Tuga. Isto não vai ficar assim. Não pode e mandei-me para o posto da policia do comando central.Na portaria deviam estar aí uns 4 camisas cinzentas...um deles sentado e os outros todos de pé...numa mesa pequena estava um caixote com muitas cartas de condução, tipo venda ambulante, à espera dos seus donos. Decidido perguntei..."vim levantar a minha carta de condução...quero pagar uma multa e levantar a minha carta".
O camisa cinzenta chefe (o que estava sentado) afirmou..."a secrtaria fecha às 15:30...tem que virr na 2ª feira"...como não ia convidar aquela gente toda para drink nenhum, resmunguei e vim-me embora.
Telefonei ao tuga zé, convicto que isto era caso para tribunal e que ele tinha que me arranjar um advogado...o tuga zé, que nasceu aqui, ouviu pacientemente a minha história e disse sempre que sim..."telefona ao pedro que ele ajuda-te" e terminou o telefonema.
Decidido rumei ao último reduto da lei...a Embaixada da Tugolandia.
Chegado à Jules Nyerere estacionei o carro e entrei no baluarte da civilização...passei pela segurança, parei à frente da recepcionista e reportei o meu problema "queria falar com alguém para me ajudar...roubaram-me a carta de condução"...telefonema para cima...telefonema para baixo...e atendeu uma tal de vanda..."estou sim"..."sim, faça o favor de dizer"...disse a vanda..."daqui fala um cidadão tuga...um policia roubou-me a carta...e não sei agora o que fazer...isto não é legal"..."olhe" disse a vanda "vai ter que ir ao consulado...Moçambique é um estado soberano... aqui são só assuntos políticos"..."OK" disse eu e continuei "e o consulado está aberto a esta hora?"...lacónicamente a vanda respondeu "Não"..."e então como vou fazer?"..."vai ter que escrever uma carta"..."e para onde...não me pode dar o e-mail"..."posso sim"...e aguardei pelo endereço "tugatuga@tugolandia.pt"..."obrigado" retorqui, resmunguei outra vez...e saí.
Eram 17h e Maputo estava com um calor fantástico. Pelo caminho reparava, como reparo sempre, numa aquitectura que eu sei bem ver. Esquina por esquina o meu olhar vai tropeçando no ar duma África que sempre foi minha. O meu pai, também ele africano, ensinou-me de menino a por os olhos no céu.
Rumei a minha casa para fazer a carta...mas desta vez para a minha namorada...África. Pelo meio recordei as palavras da RDP "hoje morreu um filho de Moçambique...Carlos Pinto Coelho"...foi então que percebi a languidez tropical daquele pivot eterno da "nossa" televisão:
"A toda a equipa que produziu, realizou e levou até si este programa...um bom fim de semana" e fui para casa a pensar no jantar.
Alexandre Sales"
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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Tripas à Cafreal (3)
III
Subitamente o calor produziu um pensamento africano...tinha uma fotocópia da carta de condução na minha pasta, que tinha tirado de manhã.Não hesitei e marchei sobre a casa que autentica as fotocópias...já me conhecem...sou tuga... tenho um ar gingão...dou boas gorjas...entrei, comprimentei e fiz charme..."a martinha está boa"..."tudo beeem...brigado"...(vocês não sabem mas a martinha é a filha da menina que tira as fotocópias para serem reconhecidas).
"são as cópias do costume"..."muito beeem, são 10 meticais"...dei 17 e disse o habitual "podem ficar com o troco...um beijinho para a martinha!"..."brigado" e num minuto a mãe da martinha sem saber já tinha produzido uma nova carta de condução ao Tuga.
Telefonei ao edmundo e avisei "já não precisa de vir...já resolvi o problema"..."OK Dôtor. Tudo beem"
Entrei de novo no carro e segui atrasado para o Business Lunch. Estacionei no meio da confusão e um lavador veio-me pedir os 10 paus habituais...resmunguei à tuga...não dei nada e segui o meu caminho a olhar para o relógio.
Quando cheguei ao restaurante, já estava atrasado 15 minutos...mas mesmo assim levei uma seca de mais 45 à espera dos meus business partners...hoje África estava mesmo em grande .
Entrei e partilhei a minha história com algum pessoal que já me conhece...foi quando um mulato afirmou..."cuidado com o stress, tuga, cuidado com o stress!"...mais uma vez registei a dica e prossegui.
Sentei-me, esperei, liguei o computador e mandei uns mails para Portugal...o meu partner chegou sem o plural e almoçamos sem stress.
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terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Tripas à Cafreal (2)
II
Mas o calor apertava e eram já 13h. Já estava a queimar a hora do Business Lunch. Foi aí que tirei o carro do estacionamento e comecei a subir a Samora Machel...quando drrpente viro...sim...digo mesmo drrpente...azar o meu...desta vez tinha mesmo feito uma infracção trrivel...entrei por um sentido proibido."Prri prri prri" apita o policia de camisa branca ordenando-me para encostar...e eu parei...apresentou-se, bateu continência e disse "Boa tarrde", "Boa tarde" repliquei..."A sua carrta por favor" retorquiu o avô... "Aqui está ela"...disse eu.
O meu Tugo-pensamento voava e bebia o que via...um verdadeiro Policia africano...devia ser avô para aí de 60 netos...e os dentes já deviam ter caído fazia décadas.
"O Sênhór não viu o sinal?" disse o avô..."não reparei Sr. Cabo"..."então vai levarr murta"..."vão serr mir meticais".
"Mil Meticais, Sr Cabo!!...não tenho esse dinheiro"...e tentei a táctica que tinha resultado antes com a mulher policia..."mas Sr. cabo...não quer resolver o problema de outra maneira?"...mas ele não parou de escrever no livro de multas...apenas disse "o patrão é que sabe!"..."vamos ter que ir ao coomando" e prosseguiu.
Quando tal, o Avô policia entrou no carro dos camisas cinzentas e fugiu...sim...simplesmente fugiu com a minha carta...novamente África a revelar-se...mas desta vez sem drink agendado.
Num 1º impulso pensei para mim...Bem...hoje é 6ª...3ªa feira arranco para Portugal...no fim de semana ando de taxi...não há crise...tudo se resolve...e de pronto telefonei para a empresa que me tinha alugado o carro..."Edmundo"..."sim Dôtor"..."sou eu o Tuga"..."sim Dôtor, já perrcebi"..."olhe edmundo apreenderam-me a carta e o melhor é vir buscar o carro já...vou passar a andar de taxi"..."tudo beem Dôtor...estou vindo"..."mas quanto tempo demora?"..."aí uns 20 minutos"..."tudo bem...estou à sua espera na Ateneia".
Pelo meio fiz um telefonema para o tuga Nuno..." ó pá...nuno...tu queres saber o que me fizeram...pá...queres?"..."diz lá"..."um policia roubou-me a carta"..."mas ele não pode fazer isso. É ilegal..."O pá...mas fez...e agora estou tramado. o que vale é que na 3ª sigo de volta para a tugolandia e tiro uma 2ª via"..."vai ao comando fazer queixa...eles não podem ficar com a tua carta...isso é um documento estrangeiro". Desligamos e registei a dica.
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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Bi - Tê
Cimo de Vila
Se precisares de um bom artigo de couro,
uma carteira para a tua vida
ou um cinto de fivela bem cromada,
Vai à Batalha e desce a Rua do Cimo da Vila.
Ignora a atmosfera de tempo suspenso
e não te deixes intimidar pelas mulheres lânguidas
que te chamam filho, à porta das pensões.
Lembra-te que vais pelo couro.
À tua direita, verás a Casa Crocodilo.
- entra e diz que vais da minha parte.
Carlos Tê, in "Cimo da Vila"
Tripas à Cafreal (1)
Porque o picaresco não tem geografias de latitudes nem longitudes começo a publicar um texto (que dividi em 4 partes) de um amigo recém-ido para Moçambique
Carta para a minha namorada
I
"17 de Dezembro de 2010, 6ª feira, 13:00h, sol a pino, calor tropical em Maputo e eu, Tuga Anginho, recém saído do banco Corporate com o suor a escorrer-me pelas costas.
Vestido de camisa branca cintada, jeans, óculos Ray-Ban e pasta a condizer, espreito com confiança as oportunidades...I am Business Man...a real one...e faço uso dos inglesismos que me acompanharam na adolescência...estou em casa...sim estou em casa...aqui fala-se Anglo-Português...quando aprender Xangana estarei perfeito.
Meia hora, antes uma mulher policia, com uma camisa não sei bem de que cor, tinha alegado uma paragem ilegal do meu carro à margem da intransitável Zedequias Manganhela.
Foi mesmo aí que África se revelou em todo o seu esplendor...subornei-a com 80 paus (40 para ela e 40 para um ele que a acompanhava)...e no fim deixou-me o numero de telefone para um drink..."manda um bip...vai...manda um bip"..."põe aí Carrmo Policinha para não se esqueceerr"...fantástico...senti-me um ás e mandei um sms para a Tugolandia a reportar...subornar uma Policia e agendar um encontro em simultâneo...é fabuloso...pura e simplesmente fabuloso.
(continua amanhã)
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domingo, 26 de dezembro de 2010
EXCESSOS DE LINGUAGEM
Ainda que desperte de novo a Banca
e a Indústria se reerga do escombro,
jamais esta prosódia crua e franca
enfeitará com renda o desassombro.
Façam da pronúncia obra de arte,
apertem o paradigma do decoro,
elevem a polidez a estandarte,
redefinam o conceito ao desaforo,
mas a cauta e sábia ronha popular
terá na imprecção e no impropério
remédio eficaz para a falta de ar.
Até a dama chique sai do sério,
desce do vison e arreia a giga,
se lhe dão mostarda a cheirar.
A própria semântica que diga
se o sangue do vocábulo fino e acetinado
não é o mesmo do vocabulário rude e malcriado.
Perguntem aos peritos da linguística
se a figura interjectiva então carago?
não espevita a mais morcona narrativa.
Que se arrepiem os cultores da estilística,
mas nada como um foda-se! bem enfático
para culminar um bom pico dramático.
Carlos Tê, in "Cimo de Vila" (Afrontamento, 2010)
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
mogno e bafio
Teve uma morte quieta.
«apagou-se» dirão mais tarde
«como um passarinho» acrescentarão
Afinal foi um ir-se cómodo
à vista da cómoda (da tia ?)
E foi um final adequado
para quem à mesma vista
tantas vezes se tinha vindo.
Porto, 21/12/2010
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Ferreira Gullar
FIGURA - FUNDO
in, "Em alguma parte alguma" (3ª ed., 2010)
a pintura, digamos,
é mentira
isto é:
uma pêra
pintada
não cheira
não se dilui
em xarope,
água rala e azeda, é
pintura e por isso
dura
mais que qualquer pêra verdadeira
e por isso também, digamos,
a pêra pintada a falsa
pêra
por ser mentira
(por ser
cultura e não natura)
desta sorte
nos alivia
da perda e do podre
da morte
e se a mentira fosse verdadeira ?
como fazê-la ?
mas escute:
o que é falso
é a pêra que a pintura figura
não a pintura
a côr
o traço
a pasta
a fatura
por que então
não fazer
em vez da pintura-pêra
a pintura pura?
a verdade é que
a fruta pintada
não tem carnadura
não se pode comê-la
- é impaste, tintura
na tela
mas pode - e por isto -
ser bela
e, de outra maneira,
verdadeira
é que a fruta-pintura
é apenas figura
sobre um fundo
de tela
(de tinta
de pasta)
mas
e se a beleza
não basta?
e se o pintor
quer fazê-la
nascer da pasta
do fundo
(do fundo do fundo)
como a pêra real nasce do mundo?
(onde começa a pêra?
na pereira? onde
começa a pereira?
em que dia?
em que hora?
em que século?
surgiu
a árvore da pêra?
a cõr
da pêra? o sabor
da fruta pêra?)
E o pintor então dissolve
a figura da pêra
na pasta escura do fundo
para
sem mentira
dizê-la
e nela
dizer o mundo
Pintar a partir de então
é despintar
fundir a forma
na escuridão
(na pasta, na lama)
fundir os brancos
os verdes os azuis
na suja
matéria sem luz
e assim
pelo avesso
o pintor
chega ao fim
isto é, ao começo:
da pasta escura
(do fundo pintado)
ressurge a figura
(ao contrário
de antes, quando
da figura
nascia o fundo).
in, "Em alguma parte alguma" (3ª ed., 2010)
sábado, 11 de dezembro de 2010
Os mundos que as voltas dão (1)
Há um ror de anos (20? 30?), numa livraria da Imprensa Nacional, o meu olhar guiou-me as mãos para um livro. Só quem já esteve numa dessas livrarias entende o que quero dizer.
Gostei do título ("Da Cegueira dos Pintores"), atraía-me o autor (Júlio Pomar), interessava-me o assunto (a pintura).
Lembro-me do dia (e do sol de primavera e do frio), lembro-me da rua, e nunca me perdoei o juizo que tive (... era muito novo) ao não esvaziar, literalmente, os bolsos e salvá-lo (a ele livro) daquela aridez de monos e bafio erudito. E, quem sabe, não me ter salvo (a mim) ...
Depois, nunca mais o vi. Descruzámo-nos numa espécie de namoro, de longo e anarónico noivado, Eu sei (vagamente) por onde andei; e o que não me lembro invento (o que é outra forma de saber). A ele não lhe pergunto, mas gosto de imaginar que ficou à minha espera. Sei é que ficou em mim numa espécie de existência adormecida, enrolada num cobertor de aparente esquecimento...
Passados tantos anos, do nada (?), revi o nosso encontro... ou sonhei com ele, já não sei e não importa. Dispus-me a atravessar oceanos ou desertos para o encontar. Por uma espécie de ironia (quase infantil) tinha desaparecido... Não havia registos nem ninguém tinha ouvido falar dele. Talvez esse jogo das escondidas tenha transformado a vontade em necessidade.
Por fim, dei com ele numa biblioteca escondido no nome do tradutor e não do autor. Por não querer falar de emoções não vos conto como o trouxe colado a mim, sem o abrir, nem a pressa com que galgei avenidas e passantes. Quando, finalmente, o tive solenemente para mim, ainda me estava reservado um contratempo: aquele não era "bem o "meu" livro. Por todas as páginas se entrepunham entre nós sublinhados toscos, sinais de outra leitura, cheiro de outro leitor, outro livro, em suma. De safa na mão, tudo removi. Até ficarmos ele e eu e um ror de anos (20?30?).
E mais não digo, a não ser que afinal há salvação (ou salvações que por serem mais do mesmo devem ficar no singular).
... isto foi o que se passou com um livro que é uma voz que é uma pessoa.
Por saber a diferença entre a solidão da magia e o espectáculo do ilusionismo, também sei que estas coisas não são partilháveis. Ainda assim aqui deixo o livro:
https://docs.google.com/leaf?id=0B4AGe0kYCYitZGNhYjNhYmItYjA1OS00NGNmLTljZGQtZTcyZTE4OTJmNjNj&hl=en
Gostei do título ("Da Cegueira dos Pintores"), atraía-me o autor (Júlio Pomar), interessava-me o assunto (a pintura).
Lembro-me do dia (e do sol de primavera e do frio), lembro-me da rua, e nunca me perdoei o juizo que tive (... era muito novo) ao não esvaziar, literalmente, os bolsos e salvá-lo (a ele livro) daquela aridez de monos e bafio erudito. E, quem sabe, não me ter salvo (a mim) ...
Depois, nunca mais o vi. Descruzámo-nos numa espécie de namoro, de longo e anarónico noivado, Eu sei (vagamente) por onde andei; e o que não me lembro invento (o que é outra forma de saber). A ele não lhe pergunto, mas gosto de imaginar que ficou à minha espera. Sei é que ficou em mim numa espécie de existência adormecida, enrolada num cobertor de aparente esquecimento...
Passados tantos anos, do nada (?), revi o nosso encontro... ou sonhei com ele, já não sei e não importa. Dispus-me a atravessar oceanos ou desertos para o encontar. Por uma espécie de ironia (quase infantil) tinha desaparecido... Não havia registos nem ninguém tinha ouvido falar dele. Talvez esse jogo das escondidas tenha transformado a vontade em necessidade.
Por fim, dei com ele numa biblioteca escondido no nome do tradutor e não do autor. Por não querer falar de emoções não vos conto como o trouxe colado a mim, sem o abrir, nem a pressa com que galgei avenidas e passantes. Quando, finalmente, o tive solenemente para mim, ainda me estava reservado um contratempo: aquele não era "bem o "meu" livro. Por todas as páginas se entrepunham entre nós sublinhados toscos, sinais de outra leitura, cheiro de outro leitor, outro livro, em suma. De safa na mão, tudo removi. Até ficarmos ele e eu e um ror de anos (20?30?).
E mais não digo, a não ser que afinal há salvação (ou salvações que por serem mais do mesmo devem ficar no singular).
... isto foi o que se passou com um livro que é uma voz que é uma pessoa.
Por saber a diferença entre a solidão da magia e o espectáculo do ilusionismo, também sei que estas coisas não são partilháveis. Ainda assim aqui deixo o livro:
https://docs.google.com/leaf?id=0B4AGe0kYCYitZGNhYjNhYmItYjA1OS00NGNmLTljZGQtZTcyZTE4OTJmNjNj&hl=en
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Premonição
Quando a boca amarga e o estômago arde
E na boca o cigarro é o beijo que nos resta,
Quando o silêncio nos corrói
e uma improvável gaivota não nos deixa esquecer
Sabemos que lá fora o escuro
é só um dia de sol apagado
e há-de nascer uma noite
de luz e gente e morte
E na boca o cigarro é o beijo que nos resta,
Quando o silêncio nos corrói
e uma improvável gaivota não nos deixa esquecer
Sabemos que lá fora o escuro
é só um dia de sol apagado
e há-de nascer uma noite
de luz e gente e morte
pesadelos (noites brancas, tardes quentes)
Jules Gervais-Courtellemont - Durmiendo la siesta em Sevilla
Dorme vestido
Para não (ver/saber)es
O que se te colou
à pele
Dorme vestido
Para não (ver/saber)es
O que se te colou
à pele
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
domingo, 28 de novembro de 2010
Hilda Hilst
Tô Só
Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e
sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e
tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil
deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de
povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi
bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo
namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e
tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra
todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos
pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões
lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma
terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu
descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais
carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama
(como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá
de teta
de azul
de berimbau
de doutora em letras?
E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar,
rodar...
Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta
dos otro?
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?
nave
ave
moinho
e tudo mais serei
para que seja leve
meu passo
em vosso caminho.
Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de
gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de
ilha.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Maria Helena Vieira da Silva "Les Yeaux" (1937)
Le véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher de nouveaux paysages, mais à avoir de nouveaux yeux.
Marcel Proust, in " A La Recherche du Temps Perdu"
A verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens mas sim em ver com um novo olhar (trad. livre)
Le véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher de nouveaux paysages, mais à avoir de nouveaux yeux.
Marcel Proust, in " A La Recherche du Temps Perdu"
A verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens mas sim em ver com um novo olhar (trad. livre)
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Linguagem (mais do que palavras...)
Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.
Ludwig Wittgenstein in "Tractatus logico-philosophicus, 5-6"
Ludwig Wittgenstein in "Tractatus logico-philosophicus, 5-6"
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
a poesia é (como) a pintura que é (como) a poesia
UT PICTURA POESIS
nalgumas pinturas busco a força latente dos volumes,
o espaço pensado, a solidez angelical das figuras,
a sua comovida geometria, mas noutras, sinto a sombra
comendo os contornos das faces, ou o efeito de espelho
anulando o suporte e um sentido único da matéria.
e então nada pesa no mundo, salvo uma consciência
embargada no alongamento procurado das formas
ou nalguma ambiguidade dos sorrisos.
noutras ainda, a tactilidade restitui-me o que imagino ou sei
da carne das mulheres, de algumas pétalas, e noutras, o peso
das madeiras, dos metais, dos estofos, sob as qualidades
da luz, a variação dos silêncios metafísicos, a linha
serpentinata que enreda o movimento de um dorso
como um fio de tempo, em todas, busco
uma medida humana da representação,
mesmo que ela flutue numa irrealidade palpável
em que também posso reconhecer as dimensões efémeras
do que sou, contraditórias, obscuramente pressentidas,
quantas vezes informuladas ou desfiguradas
nas sinópias da alma. ut pictura poesis.
Vasco Graça Moura, in "Poemas Com Pessoas"
UT PICTURA POESIS
“Desde a Antiguidade, críticos literários e filósofos compararam muitas vezes as artes […]. A definição mais antiga e mais célebre é a de Simonide, para quem a poesia é uma pintura falante e a pintura uma poesia muda. A estas fórmulas podem juntar-se as da arquitectura, música petrificada, e a da música, arquitectura fluida, fórmulas inventadas, segundo Walzel (1917), na época do romantismo. No interior da literatura, é principalmente a poesia a ter o privilégio de se ver comparada às artes: são perceptíveis aproximações com a música, fundamentalmente graças a certas analogias ao nível da prosódia, com a arquitectura, mas em primeiro lugar, com a pintura” (A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, 1981)
Assim, a comparação entre a poesia e a pintura foi realizada sob diferentes ópticas por literatos e investigadores de todos os tempos, que se servem, com muita frequência, da famosa formulação horaciana do v. 361 da Ars poética: “ut pictura poesis”. A poesia é como a pintura.
Segundo Carlos de Miguel Mora, da Universidade de Aveiro, “os pontos que permitem estabelecer a comparação são basicamente dois, insinuados de maneira implícita pelo poeta: a técnica do engano e a falta de utilidade” (“Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”, Ágora. Estudos Clássicos em Debate 6, 2004; www.dlc.ua.pt/classicos/pictura.pdf).
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Arnaldo Antunes
Eu Não Sou Da Sua Rua
Eu não sou da sua rua,
Eu não sou o seu vizinho,
Eu moro muito longe, sozinho.
Estou aqui de passagem.
Eu não sou da sua rua,
Eu não falo a sua língua,
Minha vida é diferente da sua.
Estou aqui de passagem.
Esse mundo não é meu,
Esse mundo não é seu.
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sem o coronel, este quartel não é a mesma coisa
A Explosão da Imagem
Há muitos anos numa feira de loiça,
rosa ramalho deu-me um dos seus bonecos
de barro, e contou-me nesse dia a uma amiga
que me acompanhava uma história qualquer
de discussão e zanga: -- e sabe o que eu lhes disse,
menina ? um "caralhinho !" a frase foi
sublinhada com um manguito engelhado
e um riso divertido de barcelos.
passou muito tempo, mas lembro-me, rosa
ramalho recomendou-me que metesse
o boneco de barro cru, modelado de fresco,
no forno na cozinha, assim fiz e aquelas
formas húmidas explodiram pouco
depois, "-- o boneco
foi pró boneco" repetiam a rir-se
outras pessoas, pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses
ingénuas, fez-se pó, é o destino dos monstros
populares e dos outros, no
barro de que são feitos, a
minha amiga casou e mudou de cidade,
já passou mesmo muito tempo.
eu fui à minha vida, entretanto a rosa
ramalho morreu. tenho a certeza
de que ainda discute exclamando
" -- sabe que mais? -- um caralhinho !"
e que sabia o que ia acontecer
quando me disse que o boneco tinha
de ir ao forno. quem faz, desfaz.
Vasco Graça Moura, in "Poemas com Pessoas"
Há muitos anos numa feira de loiça,
rosa ramalho deu-me um dos seus bonecos
de barro, e contou-me nesse dia a uma amiga
que me acompanhava uma história qualquer
de discussão e zanga: -- e sabe o que eu lhes disse,
menina ? um "caralhinho !" a frase foi
sublinhada com um manguito engelhado
e um riso divertido de barcelos.
passou muito tempo, mas lembro-me, rosa
ramalho recomendou-me que metesse
o boneco de barro cru, modelado de fresco,
no forno na cozinha, assim fiz e aquelas
formas húmidas explodiram pouco
depois, "-- o boneco
foi pró boneco" repetiam a rir-se
outras pessoas, pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses
ingénuas, fez-se pó, é o destino dos monstros
populares e dos outros, no
barro de que são feitos, a
minha amiga casou e mudou de cidade,
já passou mesmo muito tempo.
eu fui à minha vida, entretanto a rosa
ramalho morreu. tenho a certeza
de que ainda discute exclamando
" -- sabe que mais? -- um caralhinho !"
e que sabia o que ia acontecer
quando me disse que o boneco tinha
de ir ao forno. quem faz, desfaz.
Vasco Graça Moura, in "Poemas com Pessoas"
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
terça-feira, 26 de outubro de 2010
(minha) Liberdade
Sábado entre o lixo da Vandoma, a neblina ensolarada à Porto e o Douro em baixo. Compro um livro . Entalado (ou seria aconchegado ?) nas suas páginas encontro este Moustaki. Pareceu-me bem.
Ma liberté
Longtemps je t'ai gardée
Comme une perle rare
Ma liberté
C'est toi qui m'as aidé
A larguer les amarres
Pour aller n'importe où
Pour aller jusqu'au bout
Des chemins de fortune
Pour cueillir en rêvant
Une rose des vents
Sur un rayon de lune
Ma liberté
Devant tes volontés
Mon âme était soumise
Ma liberté
Je t'avais tout donné
Ma dernière chemise
Et combien j'ai souffert
Pour pouvoir satisfaire
Tes moindres exigences
J'ai changé de pays
J'ai perdu mes amis
Pour gagner ta confiance
Ma liberté
Tu as su désarmer
Toutes mes habitudes
Ma liberté
Toi qui m'as fait aimer
Même la solitude
Toi qui m'as fait sourire
Quand je voyais finir
Une belle aventure
Toi qui m'as protégé
Quand j'allais me cacher
Pour soigner mes blessures
Ma liberté
Pourtant je t'ai quittée
Une nuit de décembre
J'ai déserté
Les chemins écartés
Que nous suivions ensemble
Lorsque sans me méfier
Les pieds et poings liés
Je me suis laissé faire
Et je t'ai trahie pour
Une prison d'amour
Et sa belle geôlière
Et je t'ai trahie pour
Une prison d'amour
Et sa belle geôlière
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Quotidiano Mágico
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Coucher avec Elle (Montand canta Desnos)
Coucher avec elle
Pour le sommeil, côte à côte
Pour les rêves parallèles
Pour la double respiration
Coucher avec elle
Pour l'ombre unique et surprenante
Pour la même chaleur
Pour la même solitude
Coucher avec elle
Pour l'aurore partagée
Pour le minuit identique
Pour les mêmes fantômes
Coucher, coucher avec elle
Pour l'amour absolu
Pour le vice et pour le vice
Pour les baisers de toute espèce
Coucher, coucher avec elle
Pour un naufrage ineffable
Pour se prostituer l'un à l'autre
Pour se confondre
Coucher avec elle
Pour se prouver et prouver vraiment
Que jamais n'a pesé sur l'âme
Et le corps des amants
Le mensonge d'une tâche originelle.
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músicas
sábado, 25 de setembro de 2010
Leonard Cohen
Teachers
I met a woman long ago
her hair the black that black can go,
Are you a teacher of the heart?
Soft she answered no.
I met a girl across the sea,
her hair the gold that gold can be,
Are you a teacher of the heart?
Yes, but not for thee.
I met a man who lost his mind
in some lost place I had to find,
follow me the wise man said,
but he walked behind.
I walked into a hospital
where none was sick and none was well,
when at night the nurses left
I could not walk at all.
Morning came and then came noon,
dinner time a scalpel blade
lay beside my silver spoon.
Some girls wander by mistake
into the mess that scalpels make.
Are you the teachers of my heart?
We teach old hearts to break.
One morning I woke up alone,
the hospital and the nurses gone.
Have I carved enough my Lord?
Child, you are a bone.
I ate and ate and ate,
no I did not miss a plate, well
How much do these suppers cost?
We'll take it out in hate.
32
I spent my hatred everyplace,
on every work on every face,
someone gave me wishes
and I wished for an embrace.
Several girls embraced me, then
I was embraced by men,
Is my passion perfect?
No, do it once again.
I was handsome I was strong,
I knew the words of every song.
Did my singing please you?
No, the words you sang were wrong.
Who is it whom I address,
who takes down what I confess?
Are you the teachers of my heart?
We teach old hearts to rest.
Oh teachers are my lessons done?
I cannot do another one.
They laughed and laughed and said, Well child,
are your lessons done?
are your lessons done?
are your lessons done?
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
registo Cartesiano
Interditando-me as graças (porque de graças se tratam), calo o "graças a deus, sou ateu".
E então é assim:
Contados pelo mapa (à escala ) foram 5 km. Isto é, 5.000 metros, ou seja, para 1 bípede vulgar como me considero, 5.000 passos.
Confirmado pela balança:: 5 kg.
Façam as contas: ...é obra !
O subjectivo é que suei, penei, pensei ( e muito), gozei ( como já não me lembrava), meninei (de mais).
Tive pena, muita pena, de mim, de nós, porque me soube só, porque me soube rei (e se há coisas que não me encaixam nos cornos, são coroas... ).
Cheguei a casa feliz, como só se pode ser feliz com as coisas simples ou indizíveis. Assim.
Continuando com a filosofia, ficavamos assim (outra vez): onde se vê um, apenas e deliberadamente, objecto, que se saiba (se grite se fôr caso disso), vida.
Talvez na radical solidão encontremos a tão ansiada fraternidade.
Muito meu, muito vosso...
... irremediavelmente!
E então é assim:
Contados pelo mapa (à escala ) foram 5 km. Isto é, 5.000 metros, ou seja, para 1 bípede vulgar como me considero, 5.000 passos.
Confirmado pela balança:: 5 kg.
Façam as contas: ...é obra !
O subjectivo é que suei, penei, pensei ( e muito), gozei ( como já não me lembrava), meninei (de mais).
Tive pena, muita pena, de mim, de nós, porque me soube só, porque me soube rei (e se há coisas que não me encaixam nos cornos, são coroas... ).
Cheguei a casa feliz, como só se pode ser feliz com as coisas simples ou indizíveis. Assim.
Continuando com a filosofia, ficavamos assim (outra vez): onde se vê um, apenas e deliberadamente, objecto, que se saiba (se grite se fôr caso disso), vida.
Talvez na radical solidão encontremos a tão ansiada fraternidade.
Muito meu, muito vosso...
... irremediavelmente!
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Monty Python (para mim)
Isn't it awfully nice to have a penis?
Isn't it frightfully good to have a dong?
It's swell to have a stiffy.
It's divine to own a dick,
From the tiniest little tadger
To the world's biggest prick.
So, three cheers for your Willy or John Thomas.
Hooray for your one-eyed trouser snake,
Your piece of pork, your wife's best friend,
Your Percy, or your cock.
You can wrap it up in ribbons.
You can slip it in your sock,
But don't take it out in public,
Or they will stick you in the dock,
And you won't come back.
monty python (para a MJ)
words and music by Eric Idle
Some things in life are bad
They can really make you mad
Other things just make you swear and curse.
When you're chewing on life's gristle
Don't grumble, give a whistle
And this'll help things turn out for the best...
And...always look on the bright side of life...
Always look on the light side of life...
If life seems jolly rotten
There's something you've forgotten
And that's to laugh and smile and dance and sing.
When you're feeling in the dumps
Don't be silly chumps
Just purse your lips and whistle - that's the thing.
And...always look on the bright side of life...
Always look on the light side of life...
For life is quite absurd
And death's the final word
You must always face the curtain with a bow.
Forget about your sin - give the audience a grin
Enjoy it - it's your last chance anyhow.
So always look on the bright side of death
Just before you draw your terminal breath
Life's a piece of shit
When you look at it
Life's a laugh and death's a joke, it's true.
You'll see it's all a show
Keep 'em laughing as you go
Just remember that the last laugh is on you.
And always look on the bright side of life...
Always look on the right side of life...
(Come on guys, cheer up!)
Always look on the bright side of life...
Always look on the bright side of life...
(Worse things happen at sea, you know.)
Always look on the bright side of life...
(I mean - what have you got to lose?)
(You know, you come from nothing - you're going back to nothing.
What have you lost? Nothing!)
Always look on the right side of life...
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Baselitz
Georg Baselitz "Die grosse Nachtim Elmer " (The Great Piss-Up], 1962-3
The exposed genitalia in Baselitz's uncompromising paintings and graphics of this period are essentially attempts to bring into the open, to make public, the effects of official 'cover-ups'and repressed
emotions in post-Holocaust West Germany. Three years earlier Gunter Grass's novel The Tin Drum had exploited images of retarded childhood to allegorize the darker aspects of the German psyche.
The exposed genitalia in Baselitz's uncompromising paintings and graphics of this period are essentially attempts to bring into the open, to make public, the effects of official 'cover-ups'and repressed
emotions in post-Holocaust West Germany. Three years earlier Gunter Grass's novel The Tin Drum had exploited images of retarded childhood to allegorize the darker aspects of the German psyche.
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Pintura
Piero Manzoni
Piero Manzoni, Artist’s Breath [Fiato d’artista], 1960. Balloon, wood and lead seals.
Tate Collection, London. Photo © Tate, London 2005. © DACS 2005
Tate Collection, London. Photo © Tate, London 2005. © DACS 2005
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arte
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
podiam ser pombas, podiam ser gaiolas ...
Henri Cartier-Bresson, "Henri Matisse", (1944)
Um fotógrafo, um pintor e o que hão-de ser desenhos. Afinal , gaiola (a havê-la) é a própria fotografia aprisionando o momento.
Mas isso não explica tudo, pois não ?
Um fotógrafo, um pintor e o que hão-de ser desenhos. Afinal , gaiola (a havê-la) é a própria fotografia aprisionando o momento.
Mas isso não explica tudo, pois não ?
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Borgianas
A Soma
Diante da cal de uma parede que nada
nos impede de imaginar infinita
sentou-se um homem que premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, sedimentos, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que em curiosos dons não é avara,
permite-lhe dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
dscobre que essa vasta algaravia
de linhas é a imagem da sua cara.
A Posse do Ontem
Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores. Como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre a meu lado. Quando quero escandir * versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Ilíon passou, mas Ilíon perdura no hexágono que a chora. Israel aconteceu quando era uma antiga nostalgia. Todo o poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é angústia e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos.
* - v.t. Medir, calcular, enumerar.
Pronunciar, destacando as sílabas.
Escandir versos, medi-los, contar-lhes as sílabas métricas.
Jorge Luis Borges, in "Os Conjurados" (trad.Mª da Piedade M. Ferreira e Salvato Teles de Meneses)
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Cortázar
EL DIARIO A DIARIO
Un señor toma el tranvía después de comprar el diario y ponérselo bajo
el brazo. Media hora más tarde desciende con el mismo diario bajo el
mismo brazo.
Pero ya no es el mismo diario, ahora es un montón de hojas impresas
que el señor abandona en un banco de plaza.
Apenas queda solo en el banco, el montón de hojas impresas se
convierte otra vez en un diario, hasta que un muchacho lo ve, lo lee y lo
deja convertido en un montón de hojas impresas.
Apenas queda solo en el banco, el montón de hojas impresas se
convierte otra vez en un diario, hasta que una anciana lo encuentra, lo lee y
lo deja convertido en un montón de hojas impresas. Luego se lo lleva a su
casa y en el camino lo usa para empaquetar medio kilo de acelgas, que es
para lo que sirven los diarios después de estas excitantes metamorfosis.
Julio Cortázar, in "A Volta ao Dia em 80 Mundos"
domingo, 22 de agosto de 2010
Do Humor ...
« Creio no humor que é o caminho mais curto de um homem a outro. Fazer humor é transformar a vida numa larga e tolerante benevolência, próxima da caridade. É a faísca que encobre as emoções, que responde sem responder, que não fere e diverte. O único remédioque desata os nervos do mundo sem o adormecer, que lhe dá liberdade sem o enlouquecer e entrega nas mãos dos homens, sem esmagá-los, o peso do seu próprio destino (Max Jacob).
O riso, a ironia, o humor, tenho-os como modos sérios do próprio conhecimento. Tão relevantes como o próprio conhecimento. Tão relevantes quanto as categorias da "Razão Pura" de Kant, sendo de notar que os homens superiores não riem na Alemanha, a acreditarmos em Nietzsche que foi quem o disse.
O amor, a amizade é, sobretudo, rir com o outro, cúmplice dessa partilha. Aliás, podemos rir de tudo mas não com qualquer um. Pélo-me por ouvir e contar histórias, adoçadas ou apimentadas, atravessadas pelo humor. Uma sonora gargalhada faz-nos desarmar, saltar do possível ao impossível, escutar o eco das garrafas que se esvaziam, ver as sete faíscas brilhantes do teu riso estrelado. Saber rir não é apenas uma salutar terapia, é a magnífica exclamação da alegria, a salvação do dia.»
Miguel Veiga, in "O Meu Único Infinito É A Curiosidade"
O riso, a ironia, o humor, tenho-os como modos sérios do próprio conhecimento. Tão relevantes como o próprio conhecimento. Tão relevantes quanto as categorias da "Razão Pura" de Kant, sendo de notar que os homens superiores não riem na Alemanha, a acreditarmos em Nietzsche que foi quem o disse.
O amor, a amizade é, sobretudo, rir com o outro, cúmplice dessa partilha. Aliás, podemos rir de tudo mas não com qualquer um. Pélo-me por ouvir e contar histórias, adoçadas ou apimentadas, atravessadas pelo humor. Uma sonora gargalhada faz-nos desarmar, saltar do possível ao impossível, escutar o eco das garrafas que se esvaziam, ver as sete faíscas brilhantes do teu riso estrelado. Saber rir não é apenas uma salutar terapia, é a magnífica exclamação da alegria, a salvação do dia.»
Miguel Veiga, in "O Meu Único Infinito É A Curiosidade"
Mestre Aquilino
« O que convulsiona o mundo não é a loucura. O que convulsiona o mundo é o atrito entre a consciência do ser livre e a restrição imposta por quem se julga detentor da verdade e senhor do mando. O arrepio da dúvida não é uma metáfora. A dúvida causa arrepios. Quem não duvida, quem não sentiu, alguma vez, i sinete da incerteza não passa de um banal imbecil, e todo o imbecil possui o estofo de um canalha. »
(sublinhado meu)
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
sábado, 19 de junho de 2010
José Saramago (1922 - 2010)
O FALA-SÓ
Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de uma vêm outras, e nada está seguro, etc., etc. Desta fatalidade poderia até tirar matéria para a crónica, se mesmo agora me não tivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia. Chamavam-lhe evidentemente o Tonho Maluco, uma espécie de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças. Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.
Das malícias do tonto não falo: eram muitas, e nem todas para pôr por escrito. Mas honestíssimas donas de sua casa rompiam aos gritos e empurravam o Tonho para fora dos quintais onde ele se introduzia, silencioso e ágil como um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em estranhos murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora quase suspirando enquanto a água das bicas lhe ia correndo para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes, apelidos e alcunhas, o Tonho era o Fala-Só.
Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho envelheceu e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coisas também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.
Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala-só, porque se achava que a poesia era uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem em solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que tudo isto vinha de uma noção incuravelmente romântica do que seja poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos.
Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito, e todos estavam cientes dos seus direitos e obrigações. Ninguém se misturava. Mas decerto não era assim, porque havia sãos de espírito que passavam a loucos e a poetas, e começavam a falar sozinhos, perdidos para a sociedade da gente normal. Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.
Quero eu dizer na minha que estas crónicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levanta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e se, pela magia do esconjuro involuntário, começa, enfim a compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende e a quem ninguém ajuda.
De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que começaram, os poetas, por gosto e imitação, e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.
in "A Bagagem do Viajante" (crónicas publicadas nos jornais "A Capital" (1969) e "Jornal do Fundão" (1971/2)
Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de uma vêm outras, e nada está seguro, etc., etc. Desta fatalidade poderia até tirar matéria para a crónica, se mesmo agora me não tivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia. Chamavam-lhe evidentemente o Tonho Maluco, uma espécie de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças. Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.
Das malícias do tonto não falo: eram muitas, e nem todas para pôr por escrito. Mas honestíssimas donas de sua casa rompiam aos gritos e empurravam o Tonho para fora dos quintais onde ele se introduzia, silencioso e ágil como um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em estranhos murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora quase suspirando enquanto a água das bicas lhe ia correndo para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes, apelidos e alcunhas, o Tonho era o Fala-Só.
Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho envelheceu e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coisas também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.
Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala-só, porque se achava que a poesia era uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem em solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que tudo isto vinha de uma noção incuravelmente romântica do que seja poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos.
Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito, e todos estavam cientes dos seus direitos e obrigações. Ninguém se misturava. Mas decerto não era assim, porque havia sãos de espírito que passavam a loucos e a poetas, e começavam a falar sozinhos, perdidos para a sociedade da gente normal. Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.
Quero eu dizer na minha que estas crónicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levanta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e se, pela magia do esconjuro involuntário, começa, enfim a compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende e a quem ninguém ajuda.
De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que começaram, os poetas, por gosto e imitação, e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.
in "A Bagagem do Viajante" (crónicas publicadas nos jornais "A Capital" (1969) e "Jornal do Fundão" (1971/2)
domingo, 6 de junho de 2010
bora
Bora Lá Fazer a Puta da Revolução
Da Weasel
Bora lá fazer a puta da revolução
Dar a volta a esta merda de uma vez por todas
Eu não consigo compactuar com este estado de coisas
Tá na hora de pegarmos no assunto com as nossas mãos
Vamos ver...
Segunda nao dá jeito porque saio sempre tarde
Á terça e á quinta tenho terapia não dá para faltar
Á quarta tenho a lerpa com a rapaziada
Sabes que a cartada é sagrada boy, não me digas nada
Sexta feira é dia de apanhar uma bela touca
Sábado levo o puto ao happymeal com um sorriso na boca
Resta o domingo, só espero não tar muito cansado
Se o Benfica não jogar boy, tá combinado.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
terça-feira, 18 de maio de 2010
cioran (1911-1995)
- “A obsessão pelo suicídio é própria de quem não pode viver, nem morrer, e cuja atenção nunca se afasta dessa dupla impossibilidade.”
domingo, 16 de maio de 2010
quarta-feira, 12 de maio de 2010
Gatos, Livros, Morte...
A los libros, como a los gatos, hay que renunciar a domesticarlos. Yo soy un cadáver que vive de
la vida infundida de los libros. Sé que sólo ellos, con su olor y su imaginación, me alimentan, y me
conservo joven entre los libros viejos, mientras que en la calle soy viejo entre tanto libro nuevo.
A los libros, ya digo, como a los gatos, no hay que tratar de domesticarlos. He comprendido que
su caos es el caos de mi vida, que quisiera apolínea por fuera, pero se me desordena por dentro en
cuanto llego a casa. Mis libros (no necesariamente los que yo escribo) me vivirán cuando yo muera,
vivirán en mí o viviré de ellos. Ese libro abierto y cualquiera (a lo mejor una guía de ferrocarriles)
que quedará abierto sobre mi mesa cuando yo deje de leer o lea hacia adentro, como los muertos,
ese mi libro póstumo que no lo toque nadie, maldito el que lo toque, que no lo cierre nadie, porque
entre sus páginas mudas yace la mariposa de mi mirada miope, descompuesta en colores, metáforas
o fórmulas.
Francisco Umbral, in "Un ser de lejanías"
segunda-feira, 10 de maio de 2010
sábado, 8 de maio de 2010
sexta-feira, 7 de maio de 2010
terça-feira, 4 de maio de 2010
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Alberto Pimenta
CIVILIDADE
não tussa madame
reprima a tosse
não espirre madame
reprima o espirro
não soluce madame
reprima o soluço
não cante madame
reprima o canto
não arrote madame
reprima o arroto
não cague madame
reprima a merda
e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?
ok, monsieur.
in "Ascenção de Dez Gostos à Boca" (1977)
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poemas
... mais Pimenta
PORCO TRÁGICO 1
conheço um poeta (*)
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que elefaz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.
in, "In Modo Di-Verso" (1983)
(*) - Fernando Pessoa (JM)
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poemas
domingo, 25 de abril de 2010
Fotografia Sidney Hartha
PRESSÁGIO
A tinta das canetas
PRESSÁGIO
A tinta das canetas
reflui de antipatia
e impregnadas, assíduas
cambam as borrachas
Não há fita de máquina
que o uso não esmague
o vaivém não ameace
de dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
de pausas na cabeça
Vozes inarticuladas
adensam, durante elas
uma tempestade recôndita
E nubladas carregam-se
as suspensões
encadeando em nós
o ritmo do presságio.
Sebastião Alba, in "A Noite Dividida" (Assírio & Alvim)
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