segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Ferreira Gullar

FIGURA - FUNDO

a pintura, digamos,
               é mentira

isto é:
      uma pêra
      pintada
      não cheira

       não se dilui 
    em xarope,
    água rala e azeda, é
    pintura e por isso
    dura
mais que qualquer pêra verdadeira

e por isso também, digamos,
    a pêra pintada a falsa
   pêra
   por ser mentira
   (por ser 
   cultura e não natura)
   desta sorte
         nos alivia
        da perda e do podre
        da morte

e se a mentira fosse verdadeira ?
como fazê-la ?

mas escute:
            o que é falso
é a pêra que a pintura figura
não a pintura
            a côr
            o traço
            a pasta
            a fatura
por que então
não fazer
em vez da pintura-pêra
a pintura pura?

a verdade é que
a fruta pintada
não tem carnadura
não se pode comê-la
- é impaste, tintura
na tela
mas pode - e por isto -
ser bela
e, de outra maneira,
verdadeira

é que a fruta-pintura
        é apenas figura
        sobre um fundo
        de tela
        (de tinta
        de pasta)

mas
    e se a beleza
    não basta?

e se o pintor
    quer fazê-la
nascer da pasta
do fundo
(do fundo do fundo)
como a pêra real nasce do mundo?

(onde começa a pêra?
   na pereira? onde
começa a pereira?
   em que dia?
   em que hora?
   em que século?
surgiu
   a árvore da pêra?

   a cõr 
   da pêra? o sabor
   da fruta pêra?)

E o pintor então dissolve
     a figura da pêra
na pasta escura do fundo
          para
    sem mentira
   dizê-la
   e nela
   dizer o mundo

Pintar a partir de então
     é despintar
     fundir a forma
     na escuridão
   (na pasta, na lama)
     fundir os brancos
   os verdes os azuis
     na suja
     matéria sem luz

e assim
      pelo avesso
o pintor
chega ao fim
isto é, ao começo:
     da pasta escura
     (do fundo pintado)
ressurge a figura

(ao contrário
de antes, quando
da figura
nascia o fundo).

in, "Em alguma parte alguma" (3ª ed., 2010)

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