a pintura, digamos,
é mentira
isto é:
uma pêra
pintada
não cheira
não se dilui
em xarope,
água rala e azeda, é
pintura e por isso
dura
mais que qualquer pêra verdadeira
e por isso também, digamos,
a pêra pintada a falsa
pêra
por ser mentira
(por ser
cultura e não natura)
desta sorte
nos alivia
da perda e do podre
da morte
e se a mentira fosse verdadeira ?
como fazê-la ?
mas escute:
o que é falso
é a pêra que a pintura figura
não a pintura
a côr
o traço
a pasta
a fatura
por que então
não fazer
em vez da pintura-pêra
a pintura pura?
a verdade é que
a fruta pintada
não tem carnadura
não se pode comê-la
- é impaste, tintura
na tela
mas pode - e por isto -
ser bela
e, de outra maneira,
verdadeira
é que a fruta-pintura
é apenas figura
sobre um fundo
de tela
(de tinta
de pasta)
mas
e se a beleza
não basta?
e se o pintor
quer fazê-la
nascer da pasta
do fundo
(do fundo do fundo)
como a pêra real nasce do mundo?
(onde começa a pêra?
na pereira? onde
começa a pereira?
em que dia?
em que hora?
em que século?
surgiu
a árvore da pêra?
a cõr
da pêra? o sabor
da fruta pêra?)
E o pintor então dissolve
a figura da pêra
na pasta escura do fundo
para
sem mentira
dizê-la
e nela
dizer o mundo
Pintar a partir de então
é despintar
fundir a forma
na escuridão
(na pasta, na lama)
fundir os brancos
os verdes os azuis
na suja
matéria sem luz
e assim
pelo avesso
o pintor
chega ao fim
isto é, ao começo:
da pasta escura
(do fundo pintado)
ressurge a figura
(ao contrário
de antes, quando
da figura
nascia o fundo).
in, "Em alguma parte alguma" (3ª ed., 2010)
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