O FALA-SÓ
Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de uma vêm outras, e nada está seguro, etc., etc. Desta fatalidade poderia até tirar matéria para a crónica, se mesmo agora me não tivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia. Chamavam-lhe evidentemente o Tonho Maluco, uma espécie de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças. Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.
Das malícias do tonto não falo: eram muitas, e nem todas para pôr por escrito. Mas honestíssimas donas de sua casa rompiam aos gritos e empurravam o Tonho para fora dos quintais onde ele se introduzia, silencioso e ágil como um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em estranhos murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora quase suspirando enquanto a água das bicas lhe ia correndo para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes, apelidos e alcunhas, o Tonho era o Fala-Só.
Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho envelheceu e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coisas também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.
Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala-só, porque se achava que a poesia era uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem em solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que tudo isto vinha de uma noção incuravelmente romântica do que seja poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos.
Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito, e todos estavam cientes dos seus direitos e obrigações. Ninguém se misturava. Mas decerto não era assim, porque havia sãos de espírito que passavam a loucos e a poetas, e começavam a falar sozinhos, perdidos para a sociedade da gente normal. Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.
Quero eu dizer na minha que estas crónicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levanta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e se, pela magia do esconjuro involuntário, começa, enfim a compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende e a quem ninguém ajuda.
De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que começaram, os poetas, por gosto e imitação, e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.
in "A Bagagem do Viajante" (crónicas publicadas nos jornais "A Capital" (1969) e "Jornal do Fundão" (1971/2)
sábado, 19 de junho de 2010
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"e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia.
ResponderEliminarDe modo que somos todos fala-sós por causa desta comum solidão que nenhuma palavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava."
bonita despedida