quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Borgianas



A Soma

Diante da cal de uma parede que nada
nos impede de imaginar infinita
sentou-se um homem que premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, sedimentos, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que em curiosos dons não é avara,
permite-lhe dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
dscobre que essa vasta algaravia
de linhas é a imagem da sua cara.


A Posse do Ontem

   Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores. Como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre a meu lado. Quando quero escandir * versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Ilíon passou, mas Ilíon perdura no hexágono que a chora. Israel aconteceu quando era uma antiga nostalgia. Todo o poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é angústia e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos.

* - v.t. Medir, calcular, enumerar.
Pronunciar, destacando as sílabas.
Escandir versos, medi-los, contar-lhes as sílabas métricas.

Jorge Luis Borges, in "Os Conjurados" (trad.Mª da Piedade M. Ferreira e Salvato Teles de Meneses)

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