domingo, 23 de dezembro de 2012

Livros e Leituras




sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Feliz Natal Futuro


Ladaínha dos póstumos natais


Há-de um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de um Natal e será o primeiro
em que uma só voz me evoque a sós consigo

Há-de um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira






João Garcia de Guilhade (séc. XIII)





Cantiga de Amigo

Por muito tempo, ó amado
sei eu que me dedicastes
grande amor e que ficastes
muito feliz a meu lado.
falo do tempo passado:
                                 já passou.

Os nossos grandes amores,
(longamente nos amámos !)
porque os não acabámos
como Brancaflor e Flores?
E o tempo dos amadores,
                               já passou.

Muitas coisas vos dizia,
ora louca, ora com sizo,
com multo e nenhum juízo,
enquanto durava o dia.
Mas, ai Dom João garcia,
                             já passou.

Porque essa loucura toda
                             já passou!

O alegre tempo da boda,
                             já passou.



Cantiga de Amor de Refrão

Quantos o amor faz padecer
penas que tenho padecido,
querem morrer e não duvido
que alegremente queiram morrer.
Porém enquanto vos puder ver,
   vivendo assim eu quero estar
   e esperar, e esperar.

Sei que a sofrer estou condenado
e por vós ceguem os olhos meus.
Não me acudis; nem vós, nem Deus.
mas, se sabendo-se abandonado,
ver-vos senhora, me for dado,
   vivendo assim eu quero estar
   e esperar, e esperar.

Esses que vêem tristemente
desamparada sua paixão,
querendo morrer, loucos estão.
Minha fortuna não é diferente;
porém eu digo constantemente:
   vivendo assim eu quero estar
   e esperar, e esperar.


in Natália Correia "Cantares dos Trovadores Galego Portugueses" (Ed.estampa, 1998)


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

No tempo em que os animais falavam...


   Em errância de canais, Torre de Babel televisiva, isto (tal e qual):
   « - Não confio no sangue. Confio nos afectos. O natal é a festa do clã» (Júlio Machado Vaz dixit). Poderia eu acrescentar: da alcateia (humana). Não confio no sangue humano, que culturalmente se tornou chá camomiloso, ou o que o valha. Amarelo triste, castanho alheio.
   Olho em Assis ou aqui, os fratelli bichos: desde que parideira, feroz a fêmea na defesa da cria, alheia a tamanhos ou forças, capaz de auto-sacrifício e refém do afecto (ou amor... escolham), prisioneira do sangue e do que "tem que ser". E depois...
   Depois, chegado o momento da emancipação forçada (?), a patada fria e seca, definitiva. A separação e a dor da liberdade. Um segundo parto, o alheamento (saudável ou inevitável... escolham).
   Assim se é na terra, sob o céu. Sem dactilogafias nem gramáticas, sem lirismos. Sem natais nem baptismos.
   Oxalá conseguissemos ser: livres; sós; fraternos!

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

To Build a Home







To Build a Home
The Cinematic Orchestra

There is a house built out of stone
Wooden floors, walls and window sills
Tables and chairs worn by all of the dust
This is a place where I don't feel alone
This is a place where I feel at home

And I built a home
For you
For me

Until it disappeared
From me
From you
And now, it's time to leave and turn to dust

Out in the garden where we planted the seeds
There is a tree as old as me
Branches were sewn by the color of green
Ground had arose and passed it's knees

By the cracks of the skin I climbed to the top
I climbed the tree to see the world
When the gusts came around to blow me down
I held on as tightly as you held onto me
I held on as tightly as you held onto me

And I built a home
For you
For me

Until it disappeared
From me
From you

And now, it's time to leave and turn to dust





terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Brigitte Fontaine vezes 2







Just You And Me


Si on partait dans un Boeing
Plein de champagne et d'orchidées
En robe à traîne et en smoking
Vers une mer d'impunité

Fuyant le lac d'indifférence
Fuyant les amours et la guerre
Fuyant le combat des consciences
Vers un paradis sur la Terre

Just you and me, just you and me {x2}

Si on se mettait en cavale
Par le chemin des écoliers
Pour regagner la capitale
De l'insouciance retrouvée

Si on laissait choir notre ego
Et nos antiques libidos
Pour entrer au palais du rire
Au nouveau pays du sourire

Just you and me, just you and me {x2}

Si on laissait tomber tout ça
Tous ces poids lourds, tous ces blablas
Si on partait sans un regard
Loin du péché, loin du cafard

Lâchons nos culottes en béton
Nos costards de chez Thénardier
Pour laisser nos culs de cochons
Redevenir des culs de fées

Just you and me, just you and me {x3}
Just you and me, just you and I



 



 Prohibition

J'exhibai ma carte senior
Sous les yeux goguenards des porcs
Qui partirent d'un rire obscène
Vers ma silhouette de sirène

{Refrain:}
Je suis vieille et je vous encule
Avec mon look de libellule
Je suis vieille et je vais crever
Un petit détail oublié

Passez votre chemin, bâtards
Et filez vite au wagon-bar
Je fumerai ma cigarette
Tranquillement dans les toilettes

Partout, c'est la prohibition
Alcool à la télévision
Papiers, clopes, manque de fric
Et vieillir dans les lieux publics

Partout, c'est la prohibition
Parole, écrit, fornication
Foutre interdit à soixante ans
Ou scandale et ricanements

{au Refrain}

Les malades sont prohibés
On les jette dans les fossés
À moins qu'ils n'apportent du blé
De la thune aux plus fortunés

Les vieux sont jetés aux orties
À l'asile, aux châteaux d'oubli
Voici ce qui m'attend demain
Si jamais je perds mon chemin

J'ai d'autres projets, vous voyez
Je vais baiser, boire et fumer
Je vais m'inventer d'autres cieux
Toujours plus vastes et précieux

Je suis vieille et je vous encule
Avec mon look de libellule
Je suis vieille, sans foi ni loi
Si je meurs, ce sera de joie

domingo, 2 de dezembro de 2012







Qui es-tu?

Un étranger.

Sois le bienvenu. Tout ce qui est étranger à cette ville m'est cher. Quel est ton nom?

Je m'appelle Philèbe et je suis de Corinthe.

Ah? De Corinthe? Moi, on m'appelle Électre.

Tu es belle. Tu ne ressembles pas aux gens d'ici.

Belle? Tu es sûr que je suis belle? Aussi belle que les filles de Corinthe?

Oui.

Ils ne me le dissent pas, ici. Ils ne veulent pas que je le sache. D'ailleurs à quoi ça me sert-il, je ne suis qu'une servante.

Servant? Toi? Tu n'as jamais songé à t'enfuir?

Je n'ai pas ce courage-là : j'aurais peur, seule sur les routes. Ah bien! J'attends quelque chose.

Quelque chose ou quelqu'un?

Je ne te le dirai pas. Parle plutôt. C'est une belle ville, Corinthe?

Très belle.

Je te parais niaise? C'est que j'ai tant de peine à imaginer des promenades, des chants, des sourires. Les gens d'ici sont rongés par

la peur. Et moi ...

Toi?

Par la haine. Et dis-moi encore ceci, car j'ai besoin de la savoir à cause de quelqu'un que j'attends : suppose qu'un gars de Corinthe, un de ces gars qui rient le soir avec les filles, trouve, au retour d'un voyage, son père assassiné, sa mère dans le lit du meurtrier et sa soeur en esclavage, est-ce qu'il filerait doux, le gars de Corinthe, est-ce qu'il s'en irait à reculons, en faisant des révérences, ou bien est-ce qu'il sortirait son épée et est-ce qu'il cognerait sur l'assassin jusqu'à lui faire éclater la tête?

Électre!

Chut!

Qu'y a-t-il?

C'est ma mère, la reine Clytemnestre.

Électre, le roi t'ordonne de t'apprêter pour la cérèmonie. Tu mettras ta robe noire et tes bijoux. Tu es princesse, Électre, et le peuple t'attend, comme chaque annèe.

Sais-tu ce qu'ils font, Philèbe? Il y a, au-dessus de la ville, une caverne on dit qu'elle communique avec les enfers. A chaque anniversaire, le peuple se réunit devant cette caverne, des soldats repoussent de côte la pierre qui en bouche l'entrée, et nos morts remontant des enfers, se répandent dans le ville. Ils courent partout. Je ne veux pas prendre part à ces mômeries. Ce sont leurs morts, non les miens.

Si tu n'obéis pas de ton plein gré, le roi a donné l'ordre qu'on t'amène de force.

De force? ... ha! Je paraîtrai à la fête et, puisque le peuple veut m'y voir, il ne sera pas déçu. A bientôt, je vrais m'apprêter.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Liberdade (nem do milhão nem do tostão)

 
   Despedidas são o caralho. Como qualquer pequena morte, vestem-se de folclores, levam-se a sério, escorridas de lágrimas e de lírica extremada, agigantam-se e esquecem-se do morto. Cais ou gares, de lenços brancos ou acenos gritados, inaudíveis num coro de placentas e de afectos tão inventados que, honestamente, poderiam ser jurados, a despedida junta-se em vida à terra árida do cemitério, ao cálculo da lápide e à promessa de cuidados muitos. O despedido, esse, veste a fatiota do pateta julgando ser  personagem, inconsciente de que o espectáculo o devorou e de si fez, afinal e apenas, figurante.
   Encenada, a despedida subverte a sua real natureza, inverte papéis, baralha enredos, ficciona e justifica-se. As mágoas tornam-se argumentos, o vazio preenche-se de razões (e o falecido Espinosa já nos tinha alertado para o horror que a Natureza tem do vazio...), numa pressa que só pode esconder medo ou má-consciência.
   A despedida é líquida e fugaz como um orgasmo. É momento isento de memória ou escadaria duma memória futura. Não devia haver palavra "despedida", nem "justiça" nem, tão pouco, "amizade", porque se as palavras tivessem o peso e a verdade das pedras roladas que o mar devolve à terra, honestamente,  entenderíamos que no cais ficamos não a ver partir nave ou afecto, mas a cumprir o nosso destino de morrer.
   Perdoe-se-me a presunção mas quem cuida de si como bem raro, quem se esforça por recordar um princípio e se condena a um fim está irremediavelmente fodido. No meu dicionário pobreza não sinonimiza com miséria, caminhos muitos e a força (diria viril, não fosse a conotação) é militância e nunca funcionalismo.
   Evoco Neruda (não o livro, mas o fabuloso título "Confesso que Vivi")... assim, no final, o possamos sentidamente dizer todos.
  

domingo, 25 de novembro de 2012

- Fcdnqr (e ao António também)


Boa-noite a todos

Quando o comboio partir não digas adeus porque ficaste no cais. Foi apenas o teu passado que se foi embora, na terceira ou na quarta carruagem de segunda classe, precisamente a que acaba de desaparecer no túnel. Foi apenas o teu passado que se foi embora: o teu presente ficou. O teu presente, isto é: ir ao bar da estação, sem ter tirado o lenço da algibeira, sem saudade, sem remorso, sem pena, e olhar pelo vidro da porta o cais vazio, com o relógio a marcar a hora que já não é a tua. Não penses na bagagem que ninguém recolherá na gare de uma cidade onde não irás nunca: o que arrumaste lá dentro deixou de pertencer-te. Pertence-te esta tarde de Lisboa, pode ser que algum pombo, alguma estátua, o rio. Mete a mão no bolso e deita fora a chave da tua casa, o bilhete de identidade, a agenda dos telefones, o retrato dos teus filhos, a factura da electricidade em atraso que devias pagar: o teu passado foi-se embora, a tua mulher foi-se embora, o teu emprego foi-se embora, deixaste de existir na véspera, deixaste de pensar em amanhã. No bar da estação assistes ao próximo comboio, é às nove. Esperam-te para jantar? Colocaram o teu prato, o teu copo, os teus talheres na mesa? O teu remédio para os olhos , aquelas gotas que picam? Não te inquietes com o jantar nem com o remédio: não é a ti que esperam. Não te chamas nada, foste-te embora, as gaivotas e as pessoas não te dão atenção, nenhum mendigo, nenhum cachorro te fareja. Se te cumprimentarem não respondas, se te perguntarem seja o que for diz
       - Não sei
       ou inventa uma língua para dizer
       - Não sei
       por exemplo
       - Vlkab
       ou
       - Tjmp
e mostra-lhes o rio com o indicador. Depois começa a caminhar na direcção da água, onde já não te seja possível escutar os comboios, nem os automóveis, nem as pessoas para trás de ti, demasiado longe agora, nem os morcegos a perseguirem-te nas lâmpadas dos candeeiros. É a hora em que passava o último autocarro na rua onde moraste, na rua onde o que tinha o teu nome morou. Número quarenta, primeiro andar direito, uma arca de cânfora à entrada com um espelho que pertenceu à tua mãe por cima. Falta um pedaço na moldura de talha, mas é nele que os rostos antigos se observam de tempos a tempos, surpreendidos por haverem morrido. Debruça-te da muralha para o rio e não verás ninguém: o comboio levou-te. Se calhar um telefone, se calhar um colega a interessar-te por ti, se calhar o teu filho mais velho lá em baixo, na esquina, porque pode ser que um táxi, pode ser que tu, um serão no escritório, um amigo da tropa, a consulta no médico que acabou mais tarde, a tua mulher entre o patamar e a janela, qualquer coisa como uma lágrima, um soluço de choro: não oiças. Ouve a água do tejo sem ver a água do Tejo na sua moldura de talha a que falta um pedaço, o que te dá a ideia de um cesto ou uma bota à deriva, um reflexo qualquer mas de quem? Diz
        - Vlkab
        diz
        - Tjmp
        é a única língua que verdadeiramente conheces. Lembras-te do teu pai no quintal? Aquele defeito no polegar, a cicatriz no pulso? De fumares às escondidas atrás da capoeira? De roubares ovos para os venderes na loja? O gato de faiança? O gato verdadeiro, só pupilas e cauda? O teu passado foi-se embora, não te recordas de nada, nada disso existiu e é noite. Diz
        - Boa-noite a todos
        diz
        - Fcdnqr
        o Tejo entende. E depois, a pouco e pouco, desce para ele. Repara: a arca de cânfora, o espelho por cima. Na arca os lençóis do enxoval, no espelho os rostos antigos que te aguardam. És um deles,foste sempre um deles. Quando a tua mulher ou os teus filhos passarem na entrada encontrar-te-ão ali, entre um cesto e uma bota à deriva, e saberão que voltaste. E por saberem que voltaste a tua boca, sob a água, principia a sorrir.

 António Lobo Antunes, in "Segundo Livro de Crónicas" (Dom Quixote)

Anjos Caídos (outra vez)


Anjos Caídos


Ela olhou o quadro, e disse:
- «Que bonito !»

Ela leu o poema, e disse:
-«Que triste !»

Quando, antes ou mais tarde,
Na cama desfeita, se aninhou nele

Não disse nada.

domingo, 18 de novembro de 2012

António Lobo Antunes?

  

 António 56 1/2

     Aquilo a que costumamos chamar circunstâncias e não passa, muito simplesmente, do que consentimos que a vida e as pessoas nos façam, obrigaram-no cada vez mais a relectir sobre si mesmo.
Aos vinte anos julgava que o tempo lhe resolvia os problemas: aos cinquenta dava-se conta de que o tempo se tornara o problema. Jogara tudo no acto de escrever, servindo-se de cada romance para corrigir o anterior em busca do livro que não corrigiria nunca, com tanta intensidade que não lograva recordar-se dos acontecimentos que haviam tido lugar enquanto os produzia. Esta intensidade e este trabalho faziam que não sofresse outra influência que não fosse a sua nem erigisse como modelo nada fora de si, embora o tornas-
sem mais sozinho do que um casaco esquecido num quarto de hotel vazio, enquanto o vento e a desilusão fazem estalar, à noite, a persiana que ninguém fechou. Não conhecendo a tristeza sabia o que era o
desespero: o próprio rosto no espelho para a barba da manhã, ou antes não um rosto, pedaços de rosto relectidos numa superfície inquieta, incapazes de construírem o presente, devolvendo-lhe fragmentos soltos de passado que se não ajustavam
     (tardes no jardim, bibes, triciclos)
     e transmitindo mais um sentimento de estranheza que uma lembrança comovida, o qual ajuizava para ajudar a sonhar os que não tinham coragem de sonhar sem ajuda. À ética de consumo dos outros contrapunha uma ética de produção, não por qualquer espécie de virtude
     (não possuía virtudes)
     mas por incompetência de utilizar os mecanismos práticos da felicidade. O desprezo pelo dinheiro derivava de uma malformação sem parentesco algum com o amor da pobreza. Considerava a conta no
banco como os livros desinteressantes empilhados no fundo da casa: qualquer dia, num impulso de higiene, venderia as notas a peso.
     O apreço dos jovens escritores e dos aspirantes a escritores que lhe enviavam manuscritos e cartas confundia-o: como entender que houvesse mulheres e homens dispostos a existirem, quotidianamente, na aflição e na angústia? Nunca decidira fazer livros: qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os fizesse e dava graças a Deus que aqueles de quem gostava fossem criaturas livres e o considerassem com essa espécie de indulgência que se sente em relação a quem perdeu um braço ou uma perna ao serviço de uma causa insensata. Os amigos tinham tendência a guiá-lo com a mão amável com que se conduz um cego, avisando-o dos desníveis da rua, certos que uma inocência desamparada o habitava deixando-o, indefeso, à mercê de quase tudo e principalmente de si próprio. Se pudessem tiravam-lhe os atacadores e o cinto como se faz aos presos a fim de o impedir de escapar-se sabe-se lá para onde ou de morrer por descuido, dado que não distinguia o açúcar da areia nem os diamantes do vidro, ocupado como andava a gravar as palavras tão profundamente que se pudessem ler, como Braille, sem o auxílio dos olhos. Que o dedo corresse pelas linhas e sentisse o fogo e o sangue. Para que sentissem o fogo e o sangue tornava-se necessário que ele ardesse e sangrasse.
     Saberiam os aspirantes a escritores o que se paga por uma única página? A diferença entre o puro e o impuro? Quando se deve trabalhar e quando se deve parar de trabalhar? Que o sucesso nada vale,
primeiro porque já estamos noutro lado e segundo porque as qualidades são, quase sempre, defeitos disfarçados e é desonesto satisfazermo-nos com que nos louvem pelos nossos defeitos habilmente
escondidos? Saberiam os aspirantes a escritores que não alcançar o que queremos é, no melhor dos casos, o nosso amargo triunfo? Que o romance acabado nos deixou demasiado exaustos para nos trazer alegria e que o pavor de não conseguir o próximo livro começa, logo de imediato, a perturbar-nos?
     Tardes no jardim, bibes, triciclos. Agora que o tempo resolveu os problemas e se tornou
     ele, o tempo
     o problema, reparou que as filhas se transformaram em mulheres e era noite. Mas, com um pouco de sorte, talvez deixasse atrás de si não um rastro, não a sua sombra, não uma memória: somente aquilo que, de mais profundo, em si escondia: o que tinha a mais que os restantes. E então, quando chegasse a hora, poderia deitar-se em paz, fechar os olhos, dormir: finalmente tornara-se apenas igual a vocês.

António Lobo Antunes, in "Segundo livro de Crónicas" (D.Quixote, 2002)

sábado, 17 de novembro de 2012

Vestígios remotos



Arvo Part "Spiegel im Spiegel" (Espelho(s) em espelho)

   Do manuscrito ficou o título ("Morrer não vale a pena", e era um prenúncio ou pressentimento ?), blocos e blocos de gatafunhos a remeterem conteúdos, para não deixarem morrer ideias, quando, no fundo, o autor agonizava. Nasceu outro (contabilidade felina)...
   Literatura dispensável, arrependimento nenhum. Uma (pro)funda gratidão à vida e ao trolha-pássaro que comigo me construiu.
   Acrescente-se a infinita valia de "estar certo" (que nada tem que ver com o "ter razão"), i.e. de, animal, ter a presciência de tempestades e terramotos. O vazio de nem saber nem ter razão (nem a querer ter) é, agora, a geografia de um caminho e de uma intimidade paradoxais, porque, sendo novos são os de sempre (conquistados, renegados, resgatados mas, sobretudo, postos à prova). Parir-nos custa que se farta...
   Já aqui tinha falado em despedidas. Repito-as e a elas voltarei (como a muito do que aqui, neste texto seminal, é evocado).
   


Natália Correia - Defesa do Poeta part

A Defesa do Poeta

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.


Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.


Sou em código o azul de todos
curtido couro de cicatrizes
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.


Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.


Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.


Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.


Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.


Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?


Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.


Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.


Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.




Natália Correia

«Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória*. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a a sentença.»

* Em 1966 é condenada a três anos de cadeia – com pena suspensa – pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. O livro foi editado em 1966, pela Afrodite, com selecção, prefácio e notas de sua autoria.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Começou o tempo das despedidas" ou "Os funcionários da vida"

   A mão ganha firmeza (isto é, vai-se esquecendo de si)...
   Os olhos desimpedem-se dessa espécie de catarata que torna o mundo e o reflexo no espelho foscos, transformando-se esse borrão informe numa óptica primaveril (fria e extraordinariamente nítida)...
   A memória alquimica-se em emoções e essas digerem-se, dominam-se ou sublimam-se (juntar Buda e Vailland é obra...)...
   Tudo se arruma ou aquieta e a paciência que antecede a paz nada tem de resignada...
   Em linguagem o excesso de clareza equivale à falta dela: incompreendamo-nos! Em linguagem a ausência do tempo ou da circunstância conduzem à verdade: compreendamo-nos!
   Neste outono caem-me as folhas: sem voyeurismos nem exibicionismos. Por fugaz que seja (há que proibir ao olhar o fascínio hipnótico), nessa nudez veremos cicatrizes, tatuagens, carne em movimento, feridas abertas.
   Veremos o que em nós é já morto... Como os gatos temos sete (ou tintinescamente setenta e sete) vidas. Quem viveu dar-se-á conta que já gastou algumas. Os outros terão talvez problemas ensarilhados em justificarem no céu ou no tribunal o facto de chegarem com o pecúlio intacto. Avareza ou cobardia... oliveiras e salazares, de chapéu na mão, eternos pedintes do tostão ("...para o vinho não"), atentos e obrigados e, já agora, veneradores do medo e alérgicos a liberdades

sábado, 10 de novembro de 2012

bon voyage


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Brassens (Portugal, 2012)



Le Roi
Noir Désir

Non certes, elle n'est pas bâtie,
Non certes, elle n'est pas bâtie
Sur du sable, sa dynastie,
Sur du sable, sa dynastie.

Il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Il peut dormir, ce souverain,
Il peut dormir, ce souverain,
Sur ses deux oreilles, serein,
Sur ses deux oreilles, serein.

Il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Je, tu, il, elle, nous, vous, ils,
Je, tu, il, elle, nous, vous, ils,
Tout le monde le suit, docile,
Tout le monde le suit, docile.

Il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Il est possible, au demeurant,
Il est possible, au demeurant,
Qu'on déloge le shah d'Iran,
Qu'on déloge le shah d'Iran,

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Qu'un jour on dise : "C'est fini",
Qu'un jour on dise : "C'est fini"
Au petit roi de Jordanie,
Au petit roi de Jordanie,

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Qu'en Abyssinie on récuse,
Qu'en Abyssinie on récuse,
Le roi des rois, le bon Négus,
Le roi des rois, le bon Négus,

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Que, sur un air de fandango,
Que, sur un air de fandango,
On congédie le vieux Franco,
On congédie le vieux Franco,

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Que la couronne d'Angleterre,
Que la couronne d'Angleterre,
Ce soir, demain, roule par terre,
Ce soir, demain, roule par terre,

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.

Que, ça c'est vu dans le passé,
Que, ça c'est vu dans le passé,
Marianne soit renversée
Marianne soit renversée

Mais il y a peu de chances qu'on
Détrône le roi des cons.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

T.S. Eliot. (Read by Anthony Hopkins). Noblesse Oblige: obrigado Patrícia




The Love-Song of J. Alfred Prufrock
By T.S. Eliot


Let us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question. . .                               10
Oh, do not ask, "What is it?"
Let us go and make our visit.

  In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

  The yellow fog that rubs its back upon the window-panes
The yellow smoke that rubs its muzzle on the window-panes
Licked its tongue into the corners of the evening
Lingered upon the pools that stand in drains,
Let fall upon its back the soot that falls from chimneys,
Slipped by the terrace, made a sudden leap,                               20
And seeing that it was a soft October night
Curled once about the house, and fell asleep.

  And indeed there will be time
For the yellow smoke that slides along the street,
Rubbing its back upon the window-panes;
There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet;
There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;                                30
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions
And for a hundred visions and revisions
Before the taking of a toast and tea.

  In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

  And indeed there will be time
To wonder, "Do I dare?" and, "Do I dare?"
Time to turn back and descend the stair,
With a bald spot in the middle of my hair—                               40
[They will say: "How his hair is growing thin!"]
My morning coat, my collar mounting firmly to the chin,
My necktie rich and modest, but asserted by a simple pin—
[They will say: "But how his arms and legs are thin!"]
Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse.

  For I have known them all already, known them all;
Have known the evenings, mornings, afternoons,                       50
I have measured out my life with coffee spoons;
I know the voices dying with a dying fall
Beneath the music from a farther room.
  So how should I presume?

  And I have known the eyes already, known them all—
The eyes that fix you in a formulated phrase,
And when I am formulated, sprawling on a pin,
When I am pinned and wriggling on the wall,
Then how should I begin
To spit out all the butt-ends of my days and ways?                    60
  And how should I presume?

  And I have known the arms already, known them all—
Arms that are braceleted and white and bare
[But in the lamplight, downed with light brown hair!]
Is it perfume from a dress
That makes me so digress?
Arms that lie along a table, or wrap about a shawl.
  And should I then presume?
  And how should I begin?
        .     .     .     .     .

Shall I say, I have gone at dusk through narrow streets              70
And watched the smoke that rises from the pipes
Of lonely men in shirt-sleeves, leaning out of windows? . . .

I should have been a pair of ragged claws
Scuttling across the floors of silent seas.
        .     .     .     .     .

And the afternoon, the evening, sleeps so peacefully!
Smoothed by long fingers,
Asleep . . . tired . . . or it malingers,
Stretched on the floor, here beside you and me.
Should I, after tea and cakes and ices,
Have the strength to force the moment to its crisis?                  80
But though I have wept and fasted, wept and prayed,
Though I have seen my head (grown slightly bald) brought in upon a platter,
I am no prophet–and here's no great matter;
I have seen the moment of my greatness flicker,
And I have seen the eternal Footman hold my coat, and snicker,
And in short, I was afraid.

  And would it have been worth it, after all,
After the cups, the marmalade, the tea,
Among the porcelain, among some talk of you and me,
Would it have been worth while,                                             90
To have bitten off the matter with a smile,
To have squeezed the universe into a ball
To roll it toward some overwhelming question,
To say: "I am Lazarus, come from the dead,
Come back to tell you all, I shall tell you all"
If one, settling a pillow by her head,
  Should say, "That is not what I meant at all.
  That is not it, at all."

  And would it have been worth it, after all,
Would it have been worth while,                                           100
After the sunsets and the dooryards and the sprinkled streets,
After the novels, after the teacups, after the skirts that trail along the floor—
And this, and so much more?—
It is impossible to say just what I mean!
But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on a screen:
Would it have been worth while
If one, settling a pillow or throwing off a shawl,
And turning toward the window, should say:
  "That is not it at all,
  That is not what I meant, at all."                                          110
        .     .     .     .     .

No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be;
Am an attendant lord, one that will do
To swell a progress, start a scene or two
Advise the prince; no doubt, an easy tool,
Deferential, glad to be of use,
Politic, cautious, and meticulous;
Full of high sentence, but a bit obtuse;
At times, indeed, almost ridiculous—
Almost, at times, the Fool.

  I grow old . . . I grow old . . .                                              120
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.

  Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the beach.
I have heard the mermaids singing, each to each.

  I do not think they will sing to me.

  I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.

  We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown               130
Till human voices wake us, and we drown.


                                                              [1915]

terça-feira, 16 de outubro de 2012


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Anno Domini - prosa líquida (e porque não?) ou só lenga-lenga


amor discreto
suave afecto
olhar directo
discurso aberto...

nas horas que são (e no tempo que nada é)
fica assim apenas um areal, nem de grãos
feito, nem de paraísos prometidos.

mais que realidades, possibilidades.
pois não há anjos prováveis
nem enredos e, menos ainda, sussurrações.

(bebido, liquidamente nú
frente ao espelho, à espera da resposta
que não há, nem é suposto haver.)

como quando se fica, assim,
com um afecto ladainhento,
cadenciado e latejado...
condenado a ser só sim:

«amor discreto
suave afecto
olhar directo
discurso aberto...»

se este (o discurso) tem rosto?
tem!
se se dele vem ou vai voz?
não sei!

propósito não terá
como um alfabeto
que comece no zê
e acabe no a

que me incompletas e inacabas,
que me misteriosas e impulsionas,
que me dóis e me apaziguas?
oh paradoxo da carne
e do que sobra dela...

humilérrimo e vexado
confesso um afirmativo pecado,
logo seguido dum esquecimento.
que recusantemente calo:
dá-me a a boca, dá-me a mão.

P.S. - nunca 'screvas 
(nem pessoal e, menos ainda,
pessoentamente...)
às três e tal
(caramba já são 4)

Também Eu

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
.
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
.
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
.
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen*.

Natália Correia "Ó Véspera do Prodígio - IV"

* A palavra hebraica que indica uma afirmação ou adesão às vezes matizada de desejo. Pode traduzir-se em português, pelas expressões "assim seja", "verdadeiramente" etc

Big Brother com pezinhos de lã



Whether you like it or not, the Obama and Romney campaigns have been using cookies and data miners to track what you're up to on the web. You know when those phone jockeys from Obama for America or Romney for President catch you at home working on your fantasy football team? Chances are they probably know all about your fantasy football habits and your voting record and your friends and your porn habits. This is the hyperconnected 21st-century, after all. Even your political machine can be personalized.

The New York Times offered a somewhat chilling peek inside the data science that's at the core of both the Romney and Obama campaigns on Sunday. In truth, what the presidential campaigns are doing isn't much different than what companies like Target and Capital One have been doing for years. When you visit their site, they drop a little cookie into your browser that follows you around the web and reports back on what you've been up to. According to The Times, these cookies can tell if you're looking at religious sites and then when you go back to the campaign site, it can green you with a religious message. The data gets even more detailed than that:
Officials at both campaigns say the most insightful data remains the basics: a voter's party affiliation, voting history, basic information like age and race, and preferences gleaned from one-on-one conversations with volunteers. But more subtle data mining has helped the Obama campaign learn that their supporters often eat at Red Lobster, shop at Burlington Coat Factory and listen to smooth jazz. Romney backers are more likely to drink Samuel Adams beer, eat at Olive Garden and watch college football.
The practice of data mining isn't a complete mystery. Mother Jones published a feature about Obama's data team and the use of tracking cookies that corroborates a lot the claims in the Times report. In fact, according to Mother Jones reporter Tim Murphy, it was the Obama campaign that blazed the trail on tracking voters, and Romney hustled to put a data team together after he won the primary.

Both reports are worth reading in full if you're curious about why the Romney campaign volunteer you talked to on the phone last night knew your dead cat Vincent's life story. Of course, both campaigns swear that they're respecting people's privacy. "You don't want your analytical efforts to be obvious because voters get creeped out," a Romney campaign official told The Times. "A lot of what we're doing is behind the scenes." 

 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A Boca e o Pão


     foto Robert Van Der Hilst

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Outonal (brevíssima)



O que levo comigo
para a cama deste dia
são sussurros, são quase nadas
nevoeiros líquidos , cogumelos
num relvado, a fraternidade silenciosa
sob um manto de folhas dos plátanos
que balizam aquele
que agora é o meu caminho.

Duas recusas, duas,
mais uma ausência...
e no entanto, a paz alada.
Oxalá não me firam as estrelas

terça-feira, 9 de outubro de 2012


domingo, 7 de outubro de 2012

wild life



Réalisation
Amanda Forbis
Wendy Tilby

sábado, 6 de outubro de 2012

Presciência semântica

   O menino devia ter presente o que sabe, evitando os arregalos de olhos e esbugalhos anímicos, não se aborrecendo nem com isso nos maçar, enfim: não nos pôr a todos a chapinhar no alguidar dos seus estados de alma.
   Em vez disso o que é que faz? Abanca no penico, todo rei (e absoluto !), conseguindo ainda supor o mundo parado ou suspenso do magestático cócó. Ora, tenha a santa paciência...
   Em vez de o utilizar para apontar presunções alheias, meta mas é esse roliço indicador na real narina e deixe o resto da humanidade (sim, os plebeus, esses mesmo) a abafar nas suas pequeninas existências.
   "Sex & Drugs & Protest Songs", achou gracinha não achou? ... Graças que o Praça tem! Pois agora amanhe-se. 'stá careca de saber em que dá o cómico (mais ou menos, o que acontece à merda quando atinge a ventoínha). Olhe... se o consola: podia ser muito pior...
   Camarada-Rei, ria-se connosco, tinga a alma de tinto, finja que lá fora não há. Taberne e atasque nesta tasca para, depois, ressacado mas ressarcido, seguir viagem rumo à próxima tempestade de humor divino e cuide de fraternamente ter, como tem tido, corpos para abraçar, bocas para beijar, e o mais que calo porque, aqui ao lado,  o abade (já borracho) não pára quieto com o cotovelo, a aquietar-me febres e a cuidar da salvação da alma.
   Porra, a pachorra que nós, povo, temos que ter convosco...

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mais Campos

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa 
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara, 
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele; 
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha 
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro: 
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado, 
E romantismo, sim, mas devagar...). 

Sinto uma simpatia por essa gente toda, 
Sobretudo quando não merece simpatia. 
Sim, eu sou também vadio e pedinte, 
E sou-o também por minha culpa. 
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte: 
É estar ao lado da escala social, 
É não ser adaptável  às normas da vida, 
Às normas reais ou sentimentais da vida - 
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta, 
Não ser pobre a valer, operário explorado, 
Não ser doente de uma doença incurável, 
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria, 
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas 
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas, 
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor. 

Não: tudo menos ter razão! 
Tudo menos importar-se com a humanidade! 
Tudo menos ceder ao humanitarismo! 
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela? 

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou, 
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente: 
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio, 
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte. 

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki. 
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir. 
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente 
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece. 

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato, 
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim. 

Coitado do Álvaro de Campos! 
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! 
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia! 
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos, 
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita, 
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão 

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! 
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! 

E, sim, coitado dele! 
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam, 
Que são pedintes e pedem, 
Porque a alma humana é um abismo. 

Eu é que sei. Coitado dele! 
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma! 

Mas até nem parvo sou! 
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais. 
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido. 

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! 

Já disse: sou lúcido. 
Nada de estéticas com coração: sou lúcido. 
Merda! Sou lúcido.

Bicarbonato de Sódio



Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia... 
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! 
Que amigos que tenho tido! 
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! 
Que esterco metafísico os meus propósitos todos! 
Uma angústia,  
Uma desconsolação da epiderme da alma,  
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... 
Renego. 
Renego tudo. 
Renego mais do que tudo. 
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles. 
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na 
circulação do sangue? 
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro? 
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? 
Não: vou existir.  Arre!  Vou existir. 
E-xis-tir... 
E--xis--tir ... 
Meu Deus!  Que budismo me esfria no sangue! 
Renunciar de portas todas abertas, 
Perante a paisagem todas as paisagens, 
Sem esperança, em liberdade, 
Sem nexo, 
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas, 
Monótono mas dorminhoco, 
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas! 
Que verão agradável dos outros! 
Dêem-me de beber, que não tenho sede!

Álvaro de Campos, in "Poemas"

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Welcome back


domingo, 30 de setembro de 2012

File-Sharing for Personal Use Declared Legal in Portugal

Hoping to curb the ever-increasing piracy figures in Portugal, local anti-piracy outfit ACAPOR reported the IP-addresses of 2,000 alleged file-sharers to the Attorney General last year. This week the Portuguese prosecutor came back with a ruling and decided not to go after the individuals connected to the IP-addresses. According to the prosecutor it is not against the law to share copyrighted works for personal use, and an IP-address is not enough evidence to identify a person.
 Wearing T-shirts with the slogan “Piracy is Illegal”, the movie industry sponsored anti-piracy group ACAPOR delivered several boxes full of IP-addresses of alleged ‘illegal’ file-sharers to the Attorney General’s Office last year.
The “evidence” was handed over in two batches and the group demanded the authorities act against 2,000 alleged pirates.
“We are doing anything we can to alert the government to the very serious situation in the entertainment industry,” ACAPOR commented at the time, adding that “1000 complaints a month should be enough to embarrass the judiciary system.”
However, a year later it turns out that ACAPOR’s actions have backfired and the anti-piracy group is now facing the embarrassment.
ACAPOR delivering the complaints
acapor
The Department of Investigation and Penal Action (DIAP) looked into the complaints and the prosecutor came back with his order this week. Contrary to what the anti-piracy group had hoped for, the 2,000 IP-addresses will not be taken to court.
Worse for ACAPOR, the prosecutor goes even further by ruling that file-sharing for personal use is not against the law.
“From a legal point of view, while taking into account that users are both uploaders and downloaders in these file-sharing networks, we see this conduct as lawful, even when it’s considered that the users continue to share once the download is finished.”
The prosecutor adds that the right to education, culture, and freedom of expression on the Internet should not be restricted in cases where the copyright infringements are clearly non-commercial.
In addition, the order notes that an IP-address is not a person.
The ruling explains that the person connected to the IP-address “is not necessarily the user at the moment the infringement takes place, or the user that makes available the copyrighted work, but rather the individual who has the service registered in his name, independent of whether this person using it or not”
This means that the account holders connected to these 2,000 IPs are not necessarily all copyright infringers, similar to orders we’ve seen in the United States previously.
Finally, the prosecutor ruled that even if file-sharing for personal use would be seen as illegal, the artists themselves should explicitly declare that there are not authorizing copying for personal use.
ACAPOR boss Nuno Pereira is disappointed with the decision and he accuses the prosecutor of dropping the case because it’s the easy way out.
“Personally I think the prosecutors just found a way to adapt the law to their interest – and their interest is not having to send 2,000 letters, hear 2,000 people and investigate 2,000 computers,” Pereira says.
Another way to frame it is that the prosecutor adapted the law in the interest of the public at large, which is generally speaking not a bad idea.
While the decision is hopeful for Portuguese file-sharers, it is still a matter of how the law is interpreted. For now, however, it is save to assume that Portugal is spared from the mass-BitTorrent lawsuits we’ve seen in the United States, Germany and the UK.

2 poemas zen



As palavras não fazem o homem compreender
é preciso fazer-se homem para entender as palavras.



Se acaso vires na rua um homem iluminado,
não o abordes com palavras, não o abordes com silêncio.

Herberto Hélder, in "O Bebedor Nocturno"

sábado, 29 de setembro de 2012

lapin foi ao cinema

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Pássaros Prevertianos

                          O Céu, Henri Matisse
Chanson de l'oiseleur
L'oiseau qui vole si doucement
L'oiseau rouge et tiède comme le sang
L'oiseau si tendre l'oiseau moqueur
L'oiseau qui soudain prend peur
L'oiseau qui soudain se cogne
L'oiseau qui voudrait s'enfuir
L'oiseau seul et affolé
L'oiseau qui voudrait vivre
L'oiseau qui voudrait chanter
L'oiseau qui voudrait crier
L'oiseau rouge et tiède comme le sang
L'oiseau qui vole si doucement
C'est ton coeur jolie enfant
Ton coeur qui bat de l'aile si tristement
Contre ton sein si dur si blanc




Pour faire le portrait d'un oiseau
Peindre d'abord une cage
avec une porte ouverte
peindre ensuite
quelque chose de joli
quelque chose de simple
quelque chose de beau
quelque chose d'utile
pour l'oiseau
placer ensuite la toile contre un arbre
dans un jardin
dans un bois
ou dans une forêt
se cacher derrière l'arbre
sans rien dire
sans bouger ...
Parfois l'oiseau arrive vite
mais il peut aussi bien mettre de longues années
avant de se décider
Ne pas se décourager
attendre
attendre s'il le faut pendant des années
la vitesse ou la lenteur de l'arrivée de l'oiseau
n'ayant aucun rapport
avec la réussite du tableau
Quand l'oiseau arrive
s'il arrive
observer le plus profond silence
attendre que l'oiseau entre dans la cage
et quand il est entré
fermer doucement la porte avec le pinceau
puis
effacer un à un tous les barreaux
en ayant soin de ne toucher aucune des plumes de l'oiseau
Faire ensuite le portrait de l'arbre
en choisissant la plus belle de ses branches
pour l'oiseau
peindre aussi le vert feuillage et la fraîcheur du vent
la poussière du soleil
et le bruit des bêtes de l'herbe dans la chaleur de l'été
et puis attendre que l'oiseau se décide à chanter
Si l'oiseau ne chante pas
c'est mauvais signe
signe que le tableau est mauvais
mais s'il chante c'est bon signe
signe que vous pouvez signer
Alors vous arrachez tout doucement
une des plumes de l'oiseau
et vous écrivez votre nom dans un coin du tableau.

Jacques Prévert

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

poesia e (ou vs) burguesia



(…)
Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto…
Penso que a questão é esta: a gente -  certa gente – sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar -
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato
mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo cosida, tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.
E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente
que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite
foi comprar para o cinema
porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por amor de Deus, ah, não! não!
isso não!, não se atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que, vê o logro? A quem é que isto cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige três quartas de cinema
e sim três quartas partes pretas de lã carneira?
Porque é que a pianista compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã yankee?
E porque raio despede o senhor Director três humílimos empregados
quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda
não viu um que lhe enchesse
as medidas?
- Com certa espécie de solidariedade
lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,
Poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos…
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso é já outra história…)
E com uma solidariedade muito mais viva
lembro-me de ti, meu vizinho de baixo,
sapateiro-gato-branco mas no rés-do-chão, desta vez
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã à noite
com uma casa de seis andares em encima de ti.
Também tu foste empurrado, também te disseram: Fora, gato!
Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando em ti todas as tuas grandes qualidades
vais vivendo um pouco à margem, um pouco no quinto andar…
Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo
e decido-me a andar mas para quê ? Mas para onde ?
As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário – vê-se logo
- mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico me atraem
quanto mais estes! E aqui é que começa o embróglio…
O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim ? Ou assim ?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa escura que te deram.
(…)

Mário Cesariny de Vasconcelos, in "Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos"




Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.

Burgueses somos nós todos
ó literatos.
Burgueses somos nós todos
ratos e gatos.

Burgueses somos nós todos
por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
que horror irmãos.

Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.

Mário Cesariny de Vasconcelos, in "Nobilíssima Visão"

domingo, 23 de setembro de 2012

Para acabar de vez com o assunto

    Passado o tempo sobre o texto de PPP, constata-se que a todos nos transformaram consentidamente  em burgueses. E a burguesia é canibal e contaminante.Por achar o facto esclarecedor na sua tristeza, abstenho-me de tecer considerações sobre a moeda de troca ou, como agora se diz, "a taxa de câmbio". O sonho é o que é. Com as devidas distâncias (e já lá vão 40 e tal anos) convoco o desalinhamento ideológico de Pier Paolo Pasolini, pertencente a uma espécie,(ao que tudo indica), hoje extinta. Parece-me irrelevante a razão ou desrazão do que diz, ressalto o olhar desassombrado e, sobretudo, a atitude antiburguesa por excelência chamada olhar pessoal.
   O que vejo nas palavras de ordem, o que (pre) sinto nas motivações nada tem a haver com sonho, com poesia, com beleza ou utopia.
   Com a boa consciência burguesa, consolemo-nos com o facto dos polícias já não serem (filhos do) povo. 
   Talvez tenha acabado a luta de classes. Se assim fôr, saiamos à rua e gritemos alto (enfim libertos da chatérrima opção de sermos livres):
   « - A luta de classes morreu! Viva a telenovela!»



O PCI aos jovens!
(*trechos da histórica poesia que Pier Paolo Pasolini publicou na revista L’Espresso em Junho de 1968 – por causa de, ou sobre, uma manifestação estudantil em Roma).

Lamento. A polémica contra
o PCI tinha que ser feita na primeira metade
da década passada. Vocês meus filhos, estão atrasados.
E não importa que vocês não tivessem ainda nascido...
Agora os jornalistas do mundo inteiro (inclusive os da televisão)
ficam dando-vos graxa (como acho que ainda se diz na linguagem das universidades)
Eu não, meus amigos.
Vocês têm cara de filhos do papá.
Odeio-voscomo odeio os vossos pais.
Filho de peixe sabe nadar.
Vocês têm o mesmo olhar maligno.
São medrosos, inseguros, desesperados
(ótimo!), mas também sabem como ser
prepotentes, chantagistas, convencidos, descarados:
prerrogativas pequeno-burguesas, meus amigos.
Ontem no Valle Giulia, quando vocês lutavam
com os policias,
eu simpatizava com os policias!
Porque os policias são filhos de gente pobre.
Vêm das periferias, rurais ou urbanas que sejam.
Quanto a mim, conheço muito bem
a forma como foram crianças e rapazes,
as preciosas mil liras, o pai que também continuou sendo um rapaz,
por causa da miséria, que não confere autoridade.
A mãe calejada como um carregador, ou delicada,
devido a alguma doença, como um passarinho;
os irmãos todos;
(...)
E depois vejam como os vestem: como palhaços,
com aquele pano grosseiro que fede a rancho,
caserna e povo. O pior de tudo, naturalmente,
é o estado psicológico a que são reduzidos
(por umas quarenta mil liras ao mês):
nem
mais um sorriso,
nem amizade alguma com o mundo,
separados,
excluídos (numa exclusão que não tem igual);
humilhados pela perda da qualidade de homens
em troca da de policias (ser odiado faz odiar).
Têm vinte anos, a vossa idade, meus caros e minhas caras.
Estamos obviamente de acordo contra a instituição da polícia.
Mas voltem-se contra a Magistratura, e vão ver!
Os jovens policias
que vocês por puro vandalismo (de nobre tradição
herdada do Risorgimento) de filhos do papá, agrediram
pertencem a outra classe social.
No Valle Giulia, ontem, tivemos assim um fragmento
de luta de classes: e vocês, meus amigos (embora do lado da razão)
eram os ricos, enquanto os policiais (que estavam do lado errado)
eram os pobres.
Bela vitória, portanto, a vossa! Nestes casos,
aos policias dão-se flores, meus amigos.Popolo e Corriere della Sera, Newsweek e Monde enaltecem-vos. Vocês são os seus filhos,
a sua esperança, o seu futuro...
(...)
É isso, caros filhos, que vocês sabem.
E que aplicam através de dois sentimentos irrevogáveis:
a consciência dos vossos direitos (como se sabe a democracia
só vos leva em conta a vocês) e a aspiração
ao poder.
Sim, as vossas palavras de ordem versam sempre

a tomada do poder.
(...)
Vocês ocupam as universidades,
mas suponham que a mesma idéia ocorra
aos jovens operários.
Nesse caso,
o Corriere delle Sera e Popolo, Newsweek e Monde
procurariam com a mesma solicitude
compreender os problemas deles?
A polícia limitaria-se a levar umas pancadas
dentro de uma fábrica ocupada?
Trata-se de uma observação banal;
e constrangedora. Mas sobretudo inútil:
porque vocês são burgueses
e portanto anticomunistas...
(...)
Falando assim,
vocês pedem tudo com palavras,
ao passo que com os actos, só pedem aquilo
a que têm direito (como bons filhos da burguesia que são):
uma série de reformas inadiáveis
a aplicação de novos métodos pedagógicos
e a renovação de um organismo estatal.
Bravo! que nobres sentimentos!
Que a boa estrela da burguesia vos proteja!
(...)