domingo, 25 de novembro de 2012

- Fcdnqr (e ao António também)


Boa-noite a todos

Quando o comboio partir não digas adeus porque ficaste no cais. Foi apenas o teu passado que se foi embora, na terceira ou na quarta carruagem de segunda classe, precisamente a que acaba de desaparecer no túnel. Foi apenas o teu passado que se foi embora: o teu presente ficou. O teu presente, isto é: ir ao bar da estação, sem ter tirado o lenço da algibeira, sem saudade, sem remorso, sem pena, e olhar pelo vidro da porta o cais vazio, com o relógio a marcar a hora que já não é a tua. Não penses na bagagem que ninguém recolherá na gare de uma cidade onde não irás nunca: o que arrumaste lá dentro deixou de pertencer-te. Pertence-te esta tarde de Lisboa, pode ser que algum pombo, alguma estátua, o rio. Mete a mão no bolso e deita fora a chave da tua casa, o bilhete de identidade, a agenda dos telefones, o retrato dos teus filhos, a factura da electricidade em atraso que devias pagar: o teu passado foi-se embora, a tua mulher foi-se embora, o teu emprego foi-se embora, deixaste de existir na véspera, deixaste de pensar em amanhã. No bar da estação assistes ao próximo comboio, é às nove. Esperam-te para jantar? Colocaram o teu prato, o teu copo, os teus talheres na mesa? O teu remédio para os olhos , aquelas gotas que picam? Não te inquietes com o jantar nem com o remédio: não é a ti que esperam. Não te chamas nada, foste-te embora, as gaivotas e as pessoas não te dão atenção, nenhum mendigo, nenhum cachorro te fareja. Se te cumprimentarem não respondas, se te perguntarem seja o que for diz
       - Não sei
       ou inventa uma língua para dizer
       - Não sei
       por exemplo
       - Vlkab
       ou
       - Tjmp
e mostra-lhes o rio com o indicador. Depois começa a caminhar na direcção da água, onde já não te seja possível escutar os comboios, nem os automóveis, nem as pessoas para trás de ti, demasiado longe agora, nem os morcegos a perseguirem-te nas lâmpadas dos candeeiros. É a hora em que passava o último autocarro na rua onde moraste, na rua onde o que tinha o teu nome morou. Número quarenta, primeiro andar direito, uma arca de cânfora à entrada com um espelho que pertenceu à tua mãe por cima. Falta um pedaço na moldura de talha, mas é nele que os rostos antigos se observam de tempos a tempos, surpreendidos por haverem morrido. Debruça-te da muralha para o rio e não verás ninguém: o comboio levou-te. Se calhar um telefone, se calhar um colega a interessar-te por ti, se calhar o teu filho mais velho lá em baixo, na esquina, porque pode ser que um táxi, pode ser que tu, um serão no escritório, um amigo da tropa, a consulta no médico que acabou mais tarde, a tua mulher entre o patamar e a janela, qualquer coisa como uma lágrima, um soluço de choro: não oiças. Ouve a água do tejo sem ver a água do Tejo na sua moldura de talha a que falta um pedaço, o que te dá a ideia de um cesto ou uma bota à deriva, um reflexo qualquer mas de quem? Diz
        - Vlkab
        diz
        - Tjmp
        é a única língua que verdadeiramente conheces. Lembras-te do teu pai no quintal? Aquele defeito no polegar, a cicatriz no pulso? De fumares às escondidas atrás da capoeira? De roubares ovos para os venderes na loja? O gato de faiança? O gato verdadeiro, só pupilas e cauda? O teu passado foi-se embora, não te recordas de nada, nada disso existiu e é noite. Diz
        - Boa-noite a todos
        diz
        - Fcdnqr
        o Tejo entende. E depois, a pouco e pouco, desce para ele. Repara: a arca de cânfora, o espelho por cima. Na arca os lençóis do enxoval, no espelho os rostos antigos que te aguardam. És um deles,foste sempre um deles. Quando a tua mulher ou os teus filhos passarem na entrada encontrar-te-ão ali, entre um cesto e uma bota à deriva, e saberão que voltaste. E por saberem que voltaste a tua boca, sob a água, principia a sorrir.

 António Lobo Antunes, in "Segundo Livro de Crónicas" (Dom Quixote)