domingo, 18 de novembro de 2012

António Lobo Antunes?

  

 António 56 1/2

     Aquilo a que costumamos chamar circunstâncias e não passa, muito simplesmente, do que consentimos que a vida e as pessoas nos façam, obrigaram-no cada vez mais a relectir sobre si mesmo.
Aos vinte anos julgava que o tempo lhe resolvia os problemas: aos cinquenta dava-se conta de que o tempo se tornara o problema. Jogara tudo no acto de escrever, servindo-se de cada romance para corrigir o anterior em busca do livro que não corrigiria nunca, com tanta intensidade que não lograva recordar-se dos acontecimentos que haviam tido lugar enquanto os produzia. Esta intensidade e este trabalho faziam que não sofresse outra influência que não fosse a sua nem erigisse como modelo nada fora de si, embora o tornas-
sem mais sozinho do que um casaco esquecido num quarto de hotel vazio, enquanto o vento e a desilusão fazem estalar, à noite, a persiana que ninguém fechou. Não conhecendo a tristeza sabia o que era o
desespero: o próprio rosto no espelho para a barba da manhã, ou antes não um rosto, pedaços de rosto relectidos numa superfície inquieta, incapazes de construírem o presente, devolvendo-lhe fragmentos soltos de passado que se não ajustavam
     (tardes no jardim, bibes, triciclos)
     e transmitindo mais um sentimento de estranheza que uma lembrança comovida, o qual ajuizava para ajudar a sonhar os que não tinham coragem de sonhar sem ajuda. À ética de consumo dos outros contrapunha uma ética de produção, não por qualquer espécie de virtude
     (não possuía virtudes)
     mas por incompetência de utilizar os mecanismos práticos da felicidade. O desprezo pelo dinheiro derivava de uma malformação sem parentesco algum com o amor da pobreza. Considerava a conta no
banco como os livros desinteressantes empilhados no fundo da casa: qualquer dia, num impulso de higiene, venderia as notas a peso.
     O apreço dos jovens escritores e dos aspirantes a escritores que lhe enviavam manuscritos e cartas confundia-o: como entender que houvesse mulheres e homens dispostos a existirem, quotidianamente, na aflição e na angústia? Nunca decidira fazer livros: qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os fizesse e dava graças a Deus que aqueles de quem gostava fossem criaturas livres e o considerassem com essa espécie de indulgência que se sente em relação a quem perdeu um braço ou uma perna ao serviço de uma causa insensata. Os amigos tinham tendência a guiá-lo com a mão amável com que se conduz um cego, avisando-o dos desníveis da rua, certos que uma inocência desamparada o habitava deixando-o, indefeso, à mercê de quase tudo e principalmente de si próprio. Se pudessem tiravam-lhe os atacadores e o cinto como se faz aos presos a fim de o impedir de escapar-se sabe-se lá para onde ou de morrer por descuido, dado que não distinguia o açúcar da areia nem os diamantes do vidro, ocupado como andava a gravar as palavras tão profundamente que se pudessem ler, como Braille, sem o auxílio dos olhos. Que o dedo corresse pelas linhas e sentisse o fogo e o sangue. Para que sentissem o fogo e o sangue tornava-se necessário que ele ardesse e sangrasse.
     Saberiam os aspirantes a escritores o que se paga por uma única página? A diferença entre o puro e o impuro? Quando se deve trabalhar e quando se deve parar de trabalhar? Que o sucesso nada vale,
primeiro porque já estamos noutro lado e segundo porque as qualidades são, quase sempre, defeitos disfarçados e é desonesto satisfazermo-nos com que nos louvem pelos nossos defeitos habilmente
escondidos? Saberiam os aspirantes a escritores que não alcançar o que queremos é, no melhor dos casos, o nosso amargo triunfo? Que o romance acabado nos deixou demasiado exaustos para nos trazer alegria e que o pavor de não conseguir o próximo livro começa, logo de imediato, a perturbar-nos?
     Tardes no jardim, bibes, triciclos. Agora que o tempo resolveu os problemas e se tornou
     ele, o tempo
     o problema, reparou que as filhas se transformaram em mulheres e era noite. Mas, com um pouco de sorte, talvez deixasse atrás de si não um rastro, não a sua sombra, não uma memória: somente aquilo que, de mais profundo, em si escondia: o que tinha a mais que os restantes. E então, quando chegasse a hora, poderia deitar-se em paz, fechar os olhos, dormir: finalmente tornara-se apenas igual a vocês.

António Lobo Antunes, in "Segundo livro de Crónicas" (D.Quixote, 2002)