Robert e Shana Parkel-Harrison - The Clearing
Com os estertores do ano aproximam-se,
inconscientes, os balanços, os projectos. Constato assim a minha
fraqueza,. Tornam-se nítidos os perigos, mais encorpados os
espectros e mais difícil a solidão, longa e cuidadosamente cultivada, e o
convívio íntimo com os meus mortos. Talvez tenha há tempo demais,
mortos demais. De quantos poderei ainda ocupar-me? A memória
incómoda, ditadora e caprichosa, amadrinha-me. O tempo ameaça-me. A
resistência consome-me. Na grande pira ruge o fogo, cujas labaredas
me hipnotizam. Com sorte, talvez me ceguem e devolvam ao mundo
definitivamente incapaz, inapto para o serviço de viver.
Não tenho é histórias para contar...
ordens médicas. «Nada de vinho... nada de histórias...». E eu,
que tenho com os médicos a relação que a minha avó tinha com
deus, anjos e santinhos, entrego-me completo, tão completamente que
nem me dou sequer ao trabalho de reter nomes de mazelas nem medicamentos. Claro que, por vezes, esta maneira de estar no
consultório, na marquesa ou nas mão frias dos feiticeiros, se
presta a mal-entendidos. Minha médica há cerca de 20 anos (com
direito a beijo pensado ou imaginado), tão antiga que já amiga vertical (ou
seja, sem cama), retrata-me crispada: «Essa tua atitude blasé
perante a doença...).
E, afinal, ao que venho? Ao mal-estar
de o primeiro parágrafo ser o início duma história. Mando a
medicina à merda?