sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A História da Nuvem Canibal


                                          Robert e Shana Parkel-Harrison - The Clearing
   
   Com os estertores do ano aproximam-se, inconscientes, os balanços, os projectos. Constato assim a minha fraqueza,. Tornam-se nítidos os perigos, mais encorpados os espectros e mais difícil a solidão, longa e cuidadosamente cultivada, e o convívio íntimo com os meus mortos. Talvez tenha há tempo demais, mortos demais. De quantos poderei ainda ocupar-me? A memória incómoda, ditadora e caprichosa, amadrinha-me. O tempo ameaça-me. A resistência consome-me. Na grande pira ruge o fogo, cujas labaredas me hipnotizam. Com sorte, talvez me ceguem e devolvam ao mundo definitivamente incapaz, inapto para o serviço de viver.

   Não tenho é histórias para contar... ordens médicas. «Nada de vinho... nada de histórias...». E eu, que tenho com os médicos a relação que a minha avó tinha com deus, anjos e santinhos, entrego-me completo, tão completamente que nem me dou sequer ao trabalho de reter nomes de mazelas nem medicamentos. Claro que, por vezes, esta maneira de estar no consultório, na marquesa ou nas mão frias dos feiticeiros, se presta a mal-entendidos. Minha médica há cerca de 20 anos (com direito a beijo pensado ou imaginado), tão antiga que já amiga vertical (ou seja, sem cama), retrata-me crispada: «Essa tua atitude blasé perante a doença...).

   E, afinal, ao que venho? Ao mal-estar de o primeiro parágrafo ser o início duma história. Mando a medicina à merda?