segunda-feira, 30 de junho de 2014

Gnosiologia

 
     Como de costume o magnífico exercício (verdadeira especialidade) dos bem-pensantes. A eficaz pressa com que «despacham» incomodidades» ou a imediata classificação de certas temáticas como anacrónicas e demagógicas ou, finalmente,  a (minha) omnipresente suspeita da cobardia que habita a própria  alma do intelectual. Sempre pronto à capitulação, à fuga, à pose,,,              
   


sexta-feira, 27 de junho de 2014

Remelexo


   Chorinho p'ra começar o dia e tentar abrir o olho que, teimoso e mesmo depois de cafeteira e sol a invadir casa e corpo, se recusa manter-se aberto e conduzir-me no caminho das obrigações (muito obrigadas hoje, muito obrigado)...
   Em desespero, palavra nova: «Remelexo» (bamboleio do corpo, requebro, rebolado, «obrigado Mr. Houaiss»). A ver se trabuca...







quarta-feira, 25 de junho de 2014

Destinos e Oceanos



                                                                                                                                                 Lia Melia


Só na aparência a óptica democrática do tudo igual...
O merecido silêncio celebra a força retomada
Das mãos que comandam o leme conduzindo a nave
ao seu destino incerto, não fosse essa a aventura.

Nem a pequena batota do pequeno faz-de-conta
que se vai aprendendo e sorridentemente praticando
nos retira a só nossa destinada certeza do corso,
vivido na aparente desordem com que as vagas lambem 

ou atacam a nave. E há o vento e o sal que curtem peles.
Assim serão, tanto os dias de mares parados como os tempestuosos,
uns e outros feitos de incertezas, de quase vitoriosos desesperos,  
Se a oceânica liberdade nada nos garante, faz-nos misteriosos.

Por isso o argonauta se alia ao vento, ao diabo, aos elementos.
Nada há à ré a não ser esquecimento e a cada milha mais, a certeza
da insignificância do destino. A verdadeira e comovedora
beleza, é, tão só a selvagem nau, vencendo a onda.

Nos breves momentos da solidão acalmada, do mar céu-luar,
do som líquido, da brisa e da paz (e de estrelas, irmão)
Prezam tanto marujo como capitão, não as tatuagens, mas as cicatrizes.

Se perfeitos homens houvessem, assim seriam. Felizes !


Trabalho


   Já vai alto o sol...  (onde?)


Mistérios e Hemisférios


                                                                                     Emily Winfield Martin painting «Tattoo»


terça-feira, 24 de junho de 2014

Afinal era isso ?






I

Tão reles... tão de trazer por casa
Tão de olhar no chão, tão doença
da que dói e fede, da cobarde (por nos fazer cobardes)
da devagarinho, tão morte de hospital
onde reina a fealdade e impera o medo.

Onde se fala baixo e cheira mal...
Obrigarem-nos a assim viver, ou mandarem-nos abater
«apagar» por assim dizer, no cacofónico desassossego
de mil máquinas, botijas, tubos, da impaciência da lágrima
duma vida resumida a uma tão mesquinha tristeza.

Mentirem-nos, de nós se apiedarem, roubarem-nos...
Roubarem-nos o que ainda somos, e o que havemos de (não) ser
Em mal disfarçada pressa ou, pior, em cruel lentidão.
E os consolos, então? Tipo prémios de consolação....
«É para o teu bem», «mas continuo a gostar muito de ti»,
«vais ver que tudo se arranjará», «vá, não compliques»...

E um enorme foda-se (ou um directo caminho p'ro caralho?),
A quem do alto assim fere, com festas, com direitos tortos,
ou retorcidos e ferrugentos, com mãos que infectam e línguas cuspideiras...
(antes sangue e sal) que esse salivar uma alma que não há
cega de si, ausente de tudo, habitante de nada.


II

Que bem engana o escrevente (então em dias de sol...)
Talvez por isso escreva e não diga, escondendo assim o sorriso
Que não se apaga e se proíbe riso, para que lhe não
vejam o olhar, selvagem e orgulhoso, as cicatrizes e a coragem
e essa espécie rara de dignidade, de quando se levanta um corpo
ferido, transpirado de sangue, belo da vida que com ele passou...

Imortal o que vai vencendo o medo, armado de amor e frágil presença
Imortal o que a direito olha deus, sem ter que olhar longe...
No chão ficam as sombras, um tempo vencido, armas inúteis.

De cada luta trouxe um luto. Mas, insultos poucos.
Por isso jogador, traficante de sentimentos, vampiro de engorda
«Que te vaya bien» a mentira da quarta que chá já não há
Que vivas vidas emprestadas (falta-te talento para as inventar)
Que manipules e mintas, cambalhotes e faças fintas...

Num domingo cheio de luz, fez-se o mundo e o que nele há,
palavras, sim palavras que me iluminaram mistérios, afinal, de feira.
No dia de São João, despiu-se a terra do plástico e do fedor
E renasceu carne, madeira, vida e liberdade e um amor que nunca entenderás.

E eu, finalmente, sorrio, indiferente ao que foi
É verdade que magoado, mas com o sossego de alma
que só a paz traz.


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Alice nunca por aqui passou (intróito rascunhado)





Nada te darei do que esperas...
Como dar-te se já não sou?
...se deixei de ser, sem medo nem saudade?
Espalhou-me o vento, inseminando-me
como grão de poeira e carne esquecida.

A paz veio sob a forma de esquecimento,
a prometida tempestade afinal um manso mar
de cansadas ondas, apenas leito das mentiras tantas
e tão lentas, a fazer as vezes das estrelas que não há,
acumuladas como quase tudo nesse mundo
onde se entra imaculado e se sai magoado.
Por pequenos nojos, breves agonias
microscópicas almas intactas na sua pequenez bibelótica.

Essa casa de que fujo é o retrato de corpos
a custo, silenciados. Uma pequena casa de minúsculos seres
mas donatários do mundo que há, sem dunas nem sonhos.
Que não se indigeste nem despreze, esse monumento afinal
a tão colossal e persistente esforço. A inumana
labuta que apenas capricho (que os há) interromperá

Fogo ou filhos, mil rancores ou maquilhagens
Apenas tornarão mais evidentes e arriscados
o vazio e a urgência com que calarei a mais preciosa palavra
por medo de a ver roubada do meu mundo sonhado
Nesse altar de gente e coisas que compõem  
formigueiramente, um mundo adiado e odiado



quarta-feira, 18 de junho de 2014

that's the way it is,,,





segunda-feira, 16 de junho de 2014

Sabichão


As nossas dúvidas são traidoras e fazem-nos perder o que, muitas vezes, poderíamos ganhar, pelo simples medo de arriscar.

William Shakespeare

domingo, 15 de junho de 2014

Another stupid Portuguese boy! (...e rafeiro, ainda por cima)





Now's a chance, here in France, I've got to give it a go
How d'you say I'm happy? Estoy feliz contigo? No! No!
Désolé, mon français est un petit peu confus
Parce que tout le temps si j'essaie
Hablo poco spanish - another stupid English boy!

Anyway, if I say 'si j'essaie' donc I do.
Je voudrais que tu saches en français:
Tu mi gusto mucho Piense que te amo

I gotta whole lotta love on the tip of my tongue
But the words won't come like I want them to come
I'm like Old Mother Hubbord getting lost in her cupboard
And I think I'm loosing you

mmmh

Second go, take it slow, it's not the end of the world
Enfin bon, ça c'est bon, ce n'est pas la fin du monde.
Mais il y a quelque chose que je voudrais te dire -
Listen up! écoute! Important!
Te quiero mucho. La chica mas linda
Oh no! That's español!

I gotta whole lotta love on the tip of my tongue
But the words won't come like I want them to come
I'm like Old Mother Hubbord getting lost in her cupboard
And I think I'm loosing you

So give me one more chance let me try to explain
I've got the words in my heart
But not in my brain
And now I'm all tongue tied
But at least I tried
To build a little bridge to you

In a moment of weakness I give up on the romance
And I fall for a cliché but without thinking I say
"Voulez-vous coucher avec moi ce soir?"
But you turn your back
And back with a slap!

I gotta whole lotta love on the tip of my tongue
But the words won't come like I want them to come
I'm like Old Mother Hubbord getting lost in her cupboard
And I think I'm loosing you

So give me one more chance let me try to explain
So give me one more chance let me try to explain
And I have my whole tongue tied
But at least I tried
To build a little bridge to you

I'm gonna be a little breach to you
I'll be a little breach to you  

Talvez se fumasses me apaixonasse por ti...




Imagens de "Pierrot le Fou" de Jean-Luc Godard (1965) com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina

Antes da tempestade






A dois tempos




     Depois dos cataplasmas, as ventosas, em seguida as sanguessugas, por fim as sangrias. Não se há-de ficar fraco, assim entregue a tamanhos tratamentos e pessoal domicílio-hospitalar? A, chamemos-lhe «vitalidade» que se vai nestas cenografias acaba por, aos poucos, nos retirar da (nossa) realidade. Ausentes, acabamos substituindo-a por uma encenação, que embora perfeita, não se invisibiliza a olhar atento... E, convenhamos, não deixa de ser tentadora toda aquela cenografia que vai do manipular dos corpos, ao elegante e harmónico ziguezaguiar por entre camas, mesinhas, tripés de soro, sem hesitações, tudo a velocidade marítima (a certa, a que tem que ser), como se não estivéssemos lá ou, estando, não fossemos tidos nem achados. Assim fosse a vida...

     Assim é a vida, penso olhando a ventoínha que me calhou numa quase vertical, sentindo a morfina a alcatifar-me um abandono morno. Tudo o resto perde nitidez. O mundo é a brisa do tecto e o movimento hipnótico, a visão de me ver cada vez mais longe, no convés daquele paquete de outros tempos. O sentir-me desprotegido sob o céu de gaivotas, afasta-me da amurada pois adivinho a água do oceano invisível, coberta de ovos, pequenos seixos animais.

   Por entre as migalhas de tempo, caídas no chão, sei que não estou no cais para cerimónias de despedidas. Não nos despedimos de nós e aquele que vejo (e me reconheço) a afastar-se numa viagem sem regressso já é o meu cadáver do insuspeitado naufrágio que, na agitação do oceano ocorrerá e ao qual dos céus apenas explodirá a confusão placentária de algo que já me não diz respeito.

   Aconchego-me à lã, descubro-me esfomeado e reentro na cidade. Às vezes o cinzentismo do que vejo e oiço, do que cheiro e me isola, parece-me, não o retrato, mas a verdadeira imagem de alguém.

sábado, 14 de junho de 2014

Tenho o Pessoa e saudades do Autran



Tinhas que vir



      Há livros de que gostamos, outros não ou nem por isso.... poderia continuar, enumerando o cardápio de todos os «sentires» até chegar aos livros que nos «marcam»...  que sabemos que vão ficar. Livros que em rigor comemos em vez de lermos.
     Acontecer isso (ou disso ter a certeza a págs noventas de novecentas e tantas) é que é raro. Fica a capa e nenhuma consideração (por agora).
     Meus sacaninhas meses, medos e passarada, desatolaram-me dum quase fatal Maio...

   

Lê-se... acredita-se?


José António Saraiva, para quem não saiba é director do semanário «O Sol». José António Saraiva, para quem não saiba foi, durante anos, director do semanário «Expresso», José António Saraiva para quem ainda se lembre (eu, graças a deus, nem por isso) previu futura atribuição do Prémio Nobel da Literatura à sua pessoa (ou seria obra?). José António Saraiva existe. Mesmo.

José António Saraiva escreveu uma crónica (ou seria editorial?) sobre a «homosexualidade» onde desenvolvia opiniões bastante singulares... ao ler esta autêntica pilosa diatribe compreendi, finalmente, para que servem os pêlos do ânus. 


A MARAVILHOSA MÁQUINA HUMANA, por José António Saraiva

Num concurso televisivo perguntaram a um concorrente quais eram os cinco sentidos. Sentado comodamente no sofá, fiz a pergunta a mim próprio e foi preciso algum esforço para recordar: a vista, o ouvido, o tacto, o olfacto e o… paladar. E isto levou-me a pensar no corpo e nas suas particularidades.
É um esforço de leigo, com os enormes riscos de erro inerentes.

Comecei por me interrogar: por que razão uma pessoa espirra? Diz-se que é um sinal de constipação ou «uma reacção alérgica». Mas eu julgo que é para expulsar impurezas que tenham entrado (ou se tenham formado) nas vias respiratórias. Quando inspiramos pó, espirramos. O espirro é, pois, uma espécie de ‘desentupidor de canos’.

Já agora, os pêlos à entrada das narinas existem, como é óbvio, para proteger as vias respiratórias dos ‘intrusos’. Aliás, por essa razão, todos os orifícios do nosso corpo têm pêlos à entrada.

As pestanas são uma espécie de ‘cortinas’ para proteger os olhos. Bem sabemos como é incómodo ter um grão de areia, por mais ínfimo que seja, dentro da vista.

Só a boca não é protegida por pêlos, dado o papel que desempenha (entrada de alimentos). Mas, mesmo assim, os longos bigodes e barbas, como tinham os antigos, formavam um autêntico reposteiro à frente dos lábios.

O tema dos pêlos – aos quais a nossa sociedade declarou guerra, a avaliar pela multiplicação das casas de depilação -, é inesgotável.

Não se percebe o motivo por que tantos futebolistas mandam rapar o cabelo à navalha, ficando muito mais vulneráveis aos choques (que durante o jogo ocorrem com enorme frequência).

Quanto aos pêlos nas outras zonas do corpo – tronco e pernas -, acho horrível os homens depilarem-se, mas é lá com eles. São pêlos evidentemente dispensáveis, pois vêm do tempo em que o homem era um animal como outro qualquer e precisava de pêlo para se proteger do frio e de outras agressões do meio.

Passando para os ouvidos, sabemos que produzem cera em quantidades variáveis de pessoa para pessoa.

E em certas alturas a cera torna-se uma fonte de complicações, por exemplo na época de praia, pois mistura-se com a água do mar e forma um tampão que obstrui os canais auditivos.

Já fui vítima dessa situação, que é muitíssimo desagradável. Uma pessoa fica completamente surda e com uma sensação de incomunicabilidade com o mundo exterior. Só que a cera é obviamente indispensável para lubrificar os órgãos do ouvido interno: o tímpano, o martelo e a bigorna. Tal como as peças móveis de uma máquina precisam de óleo, também as peças do ouvido precisam de lubrificante.

Um dos ‘pormenores’ do nosso corpo que me fizeram mais confusão quando pensei neste tema foram as unhas. Por que temos unhas? Que falta nos fazem as unhas? Aparentemente, nenhuma – e por isso as senhoras usam-nas como simples ‘adereços’, pintando-as por vezes de modo extravagante e fazendo extensões para as aumentar.

Mas que função têm (a não ser darem-nos o trabalho de as cortar)? Evidentemente as unhas são uma sobrevivência das garras, do tempo em que o homem era um animal caçador e usava as mãos e os pés como armas para segurar as presas.

Já os calos, que muita gente odeia, cumprem uma função útil: caso não existissem, formar-se-ia nessa zona uma ferida. Os calos existem para protegerem a carne em zonas mais expostas e sujeitas a fricções.

De certas características do ‘invólucro’ humano, passemos ao funcionamento interno.

O meu avô materno, que era médico, costumava dizer: «Órgão que se sente, é órgão doente». Ou seja, quando um órgão funciona realmente bem, não damos por ele. É como se não existisse.

Quando o estômago trabalha na perfeição, fazemos as digestões sem dar por isso. Mas quando começamos a ter azia, ou uma dorzinha, ou uma sensação de enfartamento, é porque a coisa já não está a 100%.

Outra curiosidade. Perguntou-me um dia um médico: «Sabe por que razão urinamos com mais frequência quando está frio?». Respondi que talvez fosse porque a bexiga está contraída e tem menos capacidade. Explicou-me que não: «É porque o organismo gasta energia a manter a urina quente. Quando está frio, o organismo não quer desperdiçar energias e expulsa a urina mais vezes».

E um mecanismo semelhante acontece na digestão, acrescento eu. Por que há congestões? Porque, para fazer a digestão, o organismo concentra energias – e sangue – no aparelho digestivo. Ora, se um indivíduo fizer durante esse período um esforço grande, que exija que o sangue acorra a outra zona do corpo, retirando-o subitamente do aparelho digestivo, pode dar-se uma paragem da digestão.

O organismo humano é uma máquina muitíssimo inteligente, que não devemos ‘enganar’.

As pessoas que tomam comprimidos por tudo e por nada fazem mal, porque estão a tornar o organismo preguiçoso ou a camuflar algum problema. As dores são um alerta: um aviso de que algo não está bem. E isso não deve ser escondido com um analgésico. Não quer dizer que uma pessoa corra para o hospital logo que tem uma dor. Mas deve tentar perceber a sua origem, até para não insistir num comportamento que agrave o mal.

Tudo no nosso corpo tem uma razão de ser. Durante muito tempo, extrair as amígdalas foi uma prática generalizada, para evitar as inflamações na garganta. Ora, veio a concluir-se que as amígdalas são como os fusíveis nas instalações eléctricas: servem para evitar males maiores.

Podemos eliminar um fusível no nosso quadro eléctrico caseiro, para não termos a chatice de estar sempre a repará-lo; mas arriscamo-nos a ter um problema muito mais grave a jusante, avariando, por exemplo, um electrodoméstico. As amígdalas infectam com facilidade para evitar infecções mais graves noutros órgãos.

A comparação do organismo humano a uma máquina, que se faz muitas vezes, só vale até certo ponto. E é perigosa.

Quando uma peça de uma máquina se estraga, o único remédio é substituí-la. A peça não se arranja sozinha. Ora, um organismo vivo tem mecanismos de reparação das peças. Quando um órgão adoece, o corpo mobiliza-se para o tentar reparar. E na maior parte das vezes consegue.

Os organismos animais estão preparados para enfrentar com sucesso a maior parte das doenças, agressões do meio, traumatismos, etc. As gripes curam-se por si, as feridas cicatrizam por si, os corpos estranhos (como picos encravados na carne) são expulsos.

Haveria muitíssimo mais a dizer sobre o corpo humano, mas como o espaço é limitado só queria acrescentar outra característica decisiva que o diferencia da máquina.

Uma máquina é igual aqui, na América, em Angola ou na China. Mas o organismo humano não. Ele adaptou-se aos diferentes meios onde o homem se instalou. Repare-se que os nórdicos têm as narinas finas e os africanos as narinas largas – porque, nas regiões quentes, o ar está mais rarefeito e é preciso aspirar maior quantidade para se ter o mesmo oxigénio.

E o mesmo vale para a pele: um nórdico que se instale em África tem de ter muito cuidado e sorte para não contrair um cancro de pele.

No nosso corpo, quase tudo tem uma razão de ser. É preciso, pois, percebê-lo, saber ouvi-lo – e interpretar bem o que ele nos diz.

P.S. – Esta crónica foi escrita sob fortes dores lombares, depois de o autor ter-se posto a abrir covas para plantar árvores, abusando claramente das disponibilidades do corpo.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Floréal ou Prairial...





   Tão incompreensivelmente preso neste Maio, o último, o que maiusculo como forma de o fazer único. Um Maio de princípio de mundo emperrado, prenhe de vozes, de esforçadas atenções, de não se deixar esquecer. O tempo tomou conta de mim ou, finalmente, tomei consciência que assim  havia de ser para o mundo se tornar o local de acerto, sem as inquietações com que me ameaçam, sem as sombras que me inquietam nem as escuridões que, cegando-me, me assustam.

   Hoje, aquela hora que, embora com a exacta precisão de relojoaria dos céus e das suiças, não se deixa apanhar em mostrador ao pulso nem cruxificar à parede, aquela hora, dizia eu, que me conformei alegre a estar com um pé no mundo e o outro no outro mundo onde não são necessários pés, aquela hora onde por breves instantes capazes de encher caixões e corações, surge o que parece ir ser um azul (depois desinteressa-se das nossas sensaborias a que chamamos sensibilidades e segue caminho), e essa indefinivel cor faz-se acompanhar pela agitação voada, bicada, cantada ou piada de uma multidão (imagino eu, fechando os olhos com a força com que peço se faça derradeiro silêncio dentro da nave desta industrial catedral chamada corpo...). Mas isso são outras danças, outras camas, outros corpos...

   Sabia, ou fiquei a saber mais, que sabemos coisas: invisíveis, indemonstráveis, muito nossas (oh estúpido colectivo de individuais e insubstituiveis presenças). E assim, soube também, que entre a madrugada de ontem e a aurora de hoje partiu (para todos os efeitos «partiu»), uma ave, a que afectuosamente chamarei «pequeno pássaro» (assim a meias... eu pequeno, ele pássaro).

   Apenas uma tristeza funda me fez abrir a janela... procurando nada. Faltando-me o ar, precisando de gritar...? Quando levantei os olhos já foi o céu da cidade, da vida que correu mal, do amor afogado... (podem chamar-lhe das desilusões) que vi. Ele riu-se ou foi só um raio de uma lágrima que largou insecto dum olho que cada vez olha menos e vê mais? Nem interessa...

   Ai este mês de Maio... já Junho cavalga desabrido («oxalá te fodas»)



 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Capas e leituras


   O romance do romance no romance. Pelo romance. Do romance.
   Porque é que se chama a uma história de amor um «romance»? Quem escreve esse romance? Um romance sem leitor...



quarta-feira, 11 de junho de 2014

Amnésia mui sabedora


Cosmic  Mind (De philosophia naturali)

   O que te digo, assim, alto, é uma forma de também a e em mim, relembrar a aprendizagem que foi, sobretudo, a confirmação de um saber que, não me pertencendo (aliás, nunca me pertenceu), não resulta de espécie alguma de mérito. Já chegamos à estação da vida demasiado carregados de bagagem, memórias, esperanças ...e ainda há quem leve farnel, ou ave de estimação, imagina). 
   Este caminho que deixo assim, inominado, é a espécie de homenagem à utopia libertária, persistente (porque abomino a palavra heróica e, me parece de direito evitar vocábulos do meu desagrado) até agora resistente aos antibióticos com que a tentamos domesticar, criando uma espécie de «quadro clínico reservado, mas estável», uma espécie de coma induzido, uma existência vegetal ou, mais rigorosamente «semi» e « vegetativa» onde, a não haver crime não há «arma fumegante».

   Passamos então  uma parte da vida que nos calha, a, por assim dizer, gerir a bagagem, (aos sortudos, segundo leio e oiço falar (embora, atavicamente rural e, portanto, céptico impenitente, me cheira a exagero urbano, a estúrdia académica ou a gozo de barzabum )  calha-lhes carga, que, como se não bastasse  ser rara e preciosa, pouco pesa, (ou seja, pouco mais que nada), inspirando cuidados nulos, permitindo assim, atravessar a vida como se esta fosse uma paisagem suiça de amores felizes, piqueniques requintados, generosidades e até, imagine-se, um tu cá, tu lá com o valor em moda, de Deus à Arte, e deixemos a política a cargo dos indignados, que no auge da sua indignação elegem o silêncio como suprema e infalível arte de exportar a indignação disfarçada de emigração)  começando por  tentar esquecer, por libertar espaço na mala, para, numa urgência (que mais parece propósito) o voltarmos a encher com objectos (não esquecer a respectiva e, igualmente, significante arrumação) de forma que numa infindável prática, em constante aperfeiçoamento, nos pareça ir sendo retrato fiel e actualizado, de quem vamos sendo, de tal forma que, por exemplo, ao passarmos fronteiras (e são tantas), o conteúdo se assemelhe tanto a nós que, de certa forma seja o nosso «alter ego», o nosso passaporte... feito (ou existente) à medida exacta das etapas que a nossa viagem exija.
   
   Digo-te a ti, em parte para me ouvir e convencer de que, com garras essanguentadas, aguentando  luas ,marés e intempéries várias, se nos amexilhoarmos  à rocha de mãos esfaceladas e carne resiliente, já anestesiados da dôr por via de nos termos tornado a própria dôr, onde sejamos apenas e todos, o primitivo instinto de resistir (e a escolha do mexilhão não foi inocente, porque ambos sabemos o que lhe acontece quando o mar bate na rocha...) aparecerão,por fim, melhores ou mais iodados dias e, por extensão melhores nós, ou mais crédulos e fortes e havemos de nos reencontrar prontos para mais «uma», esquecidos de desesperos, já indiferentes ao arrastar do tempo e ao nosso nele, perdidos em noites de ecos e nevoeiros, e de passeios bordejanjo penhascos ventosos e traiçoeiros.


   Sabes... deixei passar um pouco, para evitar falar logo connosco. Contigo, falo sempre connosco...
   Não leves migalhas, embrenha-te fundo da floresta das sombras e finge acreditar que o que ouves são mesmo pássaros.


terça-feira, 10 de junho de 2014

Assim


                   (sem indicação de autoria porque não consegui descobrir)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Campos, Soares, Pessoa e o Resto









Cruzou por mim


Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco
Aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Soldados de uma Guerra dentro da Guerra






                                                                              «Cada homem carrega dentro de si
                                                                              o seu bestiário privado» - disse o Juiz

                                                                   
                                                                                                  José Cardoso Pires  «Ascenção e queda dos porcos Voadores»,
                                                                                                                                                            in «A República dos Corvos»

                                                                                                                  



   Tão, tão ao lado... uma outra guerra, um outro tempo, uma guerra de um outro tempo. De dimensões e humidades bíblicas, se é que me posso exprimir assim...  Imóvel; de trincheiras, lama e bichos. Bicheza ou bicharada como nunca ninguém havia ousado imaginar. Entre o fogo e o aço (e água, água vomitada das profundezas da terra, água derramada sob todas as formas e combinações - só; em bátegas, em intermináveis nevoeiros, tudo apodrecendo e atormentando, entranhando-se e molhando os próprios sonhos; água só em aparência suplício menor, mas não há maneira de não esquecermos essa realidade, respeitando e temendo a loucura de que só as coisas aparentemente inofensiveis conseguem obrar), forjada nessa loucura de uma Natureza libertada assim (como barragem colapsada), nesse apocalipse para cuja descrição ainda se não havia inventado linguagem, nasceu uma convivência entre homem e esses insuspeitados seres, de tão plena cidadania quanto nós (e é dizer pouco, ou insuficiente, pois nos antecedem e, tudo leva a crer, nos sobreviverão). Na verdade, a inexistência de um léxico que descrevesse e traduzisse essa nova realidade, tão cruamente exposta, tão súbita e brutal, era, em rigor, uma guerra. Desconheço critérios e instrumentos de medida que permitam comparar horrores. Por isso, e por esse lado me abstenho.
   Já quanto ao tempo, o dos homens, o comum, já esse se fala e «pensa». Mais uma razão para não brincarmos com o fogo, se é que nos queremos manter «secos», para aceitarmos que a crosta é frágil e pouco fazemos para merecermos a memória, as rugas, as cicatrizes...
   Os amnésicos, os que se acotevelam na pressa de nos foderem, em nome dos patacos e da inteligência, os que apenas «cumprem ordens» (ontem a fazerem o sabemos, hoje a inventarem, venderem e a produzirem sonhos), os sacerdotes do banal já ganharam a guerra, a que inventaram, bons netos de avôs mortos e mausoleados. Donos do poder, ignorantes (perigosos), analfabetos da história, hão-de nos precipitar a todos numa pequeníssima fenda sem nome (as notas de rodapé dispensam-nos).
   Resta-nos a consolação de que na lama, já não num holocausto de fogo e aço, mas antes num nevoeiro de átomos e deuses coléricos e famintos de nós, hão-de sobreviver os senão justos, ao menos merecedores. Já munidos de linguagem, forjando um tempo novo de maravilhas, de ilusões novas e que já cá não estaremos para o testemunhar.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Konstantin Simonov, no Maio atrasado do fim de uma guerra maior






Espera por mim


Espera por mim, que eu voltarei,
Mas tens de esperar muito
Espera quando a chuva amarela
Trouxer a tristeza,
Espera quando a neve vier,
Espera quando fizer calor,
Espera quando os outros não esperarem,
Esquecidos do passado.
Espera, quando das terras distantes
Não chegarem cartas,
Espera, quando até a
queles
Que juntos esperam se cansarem.

Espera por mim, que eu voltarei,
Não perdoes àqueles
Que encontram palavras para dizer
Que é tempo de esquecer.
E se crêem, filho e mãe,
Que já não vivo,
Se os meus amigos, cansados de esperar,
Se sentarem à lareira
E beberem vinho amargo
Para me recordarem…
Espera. E com eles
Não te apresses a beber.

Espera por mim, que eu voltarei
A despeito da morte.
Quem não me esperou,
Que diga: ‘Teve sorte!’
Não compreendem os que não esperavam
Como no meio do fogo
A tua espera
Me salvou.
Como sobrevivi, saberemos
Apenas tu e eu, -
Foi porque me soubeste esperar
Como ninguém mais.

Tradução de Manuel de Seabra/ JM .

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Fazer a mala é, de certa forma, antecipar a viagem. (1)



   Reencontro algo que, apesar dos esforços postos na sua sobrevivência, ou seja, na sua obviada existência e importância, não só esqueci por completo, como (não fora, por exemplo, reconhecer caligrafia minha) até poderia duvidar pertencer-me. Apesar de se repetirem, nunca deixam de me surpreender e perturbar estas «aparições»... Que importâncias (tão certas e induvidáveis, que nelas pomos cuidados extremos, tentando salvaguardá-las do tempo e do esquecimento) tão evidentes, serão estas que, apesar dos muitos cuidados postos na sua salvação, acabam por se esfumar como qualquer promessa infantil. Que espécie de fome será essa, que tipo de famélicos seremos nós? Talvez necessitemos de fome e sede, de frio e fraqueza, de ocasional doença... talvez sem fragilidade não sobrevivessemos frágeis. Por isso (e por suspeitar que, lá no fundo, tentei recordar coisa «importante») devolvo o papel ao seu cuidadoso e calado esquecimento, seguindo cuidadosamente as dobras e os vincos, tentando esforçadamente não acrescentar mancha nem ruga, restituindo-o ao seu sono, ao seu inverno  de fundo de gaveta...
   Se o amanhã fôr o provável tempo que nos dizem ser, que alma caridosa e sobrevivente, o coloque, com respeito e sem comentários, no bolso do casaco com que comparecemos às derradeiras reuniões...                              

   Coisa inédita neste pequeno e precário burgo, nesta aflitiva e derradeira manifestação de inventar mãe e pátria, esta nada inocente práctica de rascunhar à vista do mundo, como se a génese, o progresso (as escolhas e as recusas) fossem de indispensável valia para a plena compreensão da ideia e do texto quando, abreviada e costumeiramente, se poupa o leitor destinatário a semelhantes maçadas. Ora, se as intenções se apresentam claras e de risco assumido, então afirme-se, (não abdicando da fundamental subjectividade a que se vê obrigada qualquer entidade literária despida de acanhados pudores), ou como parente folhetinesco, ou então de genética e propósito bem mais intrincado a que poderemos denominar de testamental. E logo fica a dúvida: de quem? Pretende despedir-se o texto ou o assunto, ou será, antes ou ao contrário, da despedida do autor? E, sendo este o caso, quais as razões? 
   No fundo, quem escreve, fá-lo essencialmente para alguém. A identidade desse leitor ideal, não ultrapassa os limites do fait divers, e a ser assim o que confere interesse e universalidade é a, por assim dizer, condenação (entendida, sem exagero, lírico ou outro, como uma espécie de esforço sísifico) a que quem escreve se vê obrigado..
   Poderia dizer-se (aceitem-se as convenções do género e esqueça-se o drama humano que cada palavra escrita, mal ou bem, esconde) que o que hoje se propõe é a narrativa, em tempo real, duma despedida. A crónica funérea de alguém que, concluindo ter vivido uma sucessão de quimeras e mal-entendidos, por uma espécie de cansaço e, nunca, como patética espécie de redenção, procurará, e disso dará testemunho, do «que resta», leia-se do «que lhe resta».  




JOSÉ

             E agora, José?
          A festa acabou,
          a luz apagou,
          o povo sumiu,
          a noite esfriou,
          e agora, José?
          e agora, você?
          você que é sem nome,
          que zomba dos outros,
          você que faz versos,
          que ama, protesta?
          e agora, José?
          Está sem mulher,
          está sem discurso,
          está sem carinho,
          já não pode beber,
          já não pode fumar,
          cuspir já não pode,
          a noite esfriou,
          o dia não veio,
          o bonde não veio,
          o riso não veio
          não veio a utopia
          e tudo acabou
          e tudo fugiu
          e tudo mofou,
          e agora, José?
          E agora, José?
          Sua doce palavra,
          seu instante de febre,
          sua gula e jejum,
          sua biblioteca,
          sua lavra de ouro,
          seu terno de vidro,
          sua incoerência,
          seu ódio - e agora?
          Com a chave na mão
          quer abrir a porta,
          não existe porta;
          quer morrer no mar,
          mas o mar secou;
          quer ir para Minas,
          Minas não há mais.
          José, e agora?
          Se você gritasse,
          se você gemesse,
          se você tocasse
          a valsa vienense,
          se você dormisse,
          se você cansasse,
          se você morresse...
          Mas você não morre,
          você é duro, José!

          Sozinho no escuro
          qual bicho-do-mato,
          sem teogonia,
          sem parede nua
          para se encostar,
          sem cavalo preto
          que fuja a galope,
          você marcha, José!
          José, para onde? 

Carlos Drummond de Andrade


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Auto-Retrato
Cardoso Pires por Cardoso Pires

"FUMAR AO ESPELHO"


"Aos cinquenta anos dei por mim a fumar ao espelho e a perguntar E agora, José. Fumar ao espelho, qualquer José sabe isso, é confrontarmo-nos com o nosso rosto mais quotidiano e mais pensado. Por trás, em fundo, tem-se um cenário do presente imediato (a porta do quarto, um cabide vazio) mas esse presente, logo à segunda fumaça já é passado (a porta desfez-se, o cabide voou) e tanto mais passado quanto mais mergulhamos no cigarro. O olhar envelheceu, foi o que foi.

E então, por mais que a gente diga que não, começam a aparecer as pegadas históricas do Dinossauro que nos andou a foder a vida durante cinquenta anos. Adivinhamo-las à super- -superfície do vidro, são manchas fósseis, gretadas, então não se vê logo?, e, escuta à distância, ouve-se o carrossel do medo. Aqui e ali vão-se levantando farrapos do muito que em nós se adiou e do muito que em nós se morreu, e nalguns casos podemos até distinguir o traço de liberdade que abrimos com os nossos livros nessa desolação prolongada. Pronto, estamos feitos, José. De agora em diante começa o rememorar, devias saber.




Certo, cinquentas... muito ano. Muito silêncio, muita humilhação. Mas diz-me, espelho, vale a pena recordá-los? A que propósito agora esse arranhar de ferida, essa recriminação?

José, no espelho, encolhe os ombros. É como se não me ouvisse, como se não se ouvisse, nada a fazer.

No espelho os olhos só se vêem reflectidos noutras coisas, segreda-me por cima do ombro o honorável William Shakespeare a páginas tantas (e com franqueza, deitam um bafo podre, estas palavras). Mas nem assim, José continua na dele. José é José, suspeita que o querem despir do passado para que fique incapaz de o reconhecer quando lho puserem pela frente na primeira oportunidade. E defende-se, não desarma. Daqui a pouco está com certeza a citar Santayana (não me admirava nada) e a sublinhar desgraças. Revê exemplos, concita mortos porque (palavras de Santayana, eu não dizia?) «quem esquece o passado arrisca-se a vivê-lo outra vez» e ao chegar a este ponto não adianta mais. Disse. Ou melhor, eu disse.

Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. E aí, deixa que te diga, o pessimismo ... que nos lixa. Porquê? Ah bom, porque... uma dor de colhões, não te rias. Absolutamente. O pessimismo, se não sabes ficas a saber, sempre teve a ver com carências afectavas. Daí que ele seja incómodo por natureza. Incómodo para o próprio que, sabe Deus, tem de viver toda a vida com essa dor, esse nó, e incómodo para a Pátria que já mandou para o Camões todos os Velhos do Restelo que lhe andavam a dar azar. Isto - por um lado, aquele a que podemos chamar Da Saúde Nacional. Mas há o outro, o da superstição. Absolutamente. O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão. Uma superstição pela negativa ou por efeito contrário, dirá algum, mas muitas ... realmente nesse jogo a dois gumes que acaba o austero pessimismo. Que horas serão isto?

Horas? Nos colóquios de espelho nunca é tarde nem é cedo nem hora certa sequer, quem me ensinou isto foi o reverendo Lewis Carrol que tinha a mania dos vidrinhos às cores. Se calhar ... Por isso que estes exercícios, se a gente não tiver cuidado, acabam num ritual que não interessa nem ao Menino Jesus. Um ritual, José, onde o padecente, em vez de incenso se esfumaça em nicotina. Em vez de incenso, tabaco, em vez de hossanas, Provocações, e às duas por três, se a gente não mete travões, esta coisa, este frente-frente, acaba numa auto- contemplação. Ou numa autoflagelação, para o caso tanto faz. Porque aqui tudo se passa entre o indivíduo e as suas imagens e, curiosamente, numa conversa muda que sabe tanto a círculo vicioso como este cigarro que eu tenho nos dedos. Fumo-o e ele fuma-me, estás a ver?

Fumar ao espelho, solidão dobrada - diria o meu irmão se aqui estivesse (mas não está, morreu aos vinte e um anos num avião militar), ele que, sem cigarro e sem espelho, acabou por conhecer a mais estranha e a mais ampla solidão que se pode conhecer. A do espaço final, vê tu. A da imensidão azul onde a morte o foi procurar, 3500 pés acima do planeta dos homens.

Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar.

Quanto à solidão de há pouco não há pleonasmo nem desdobramento que a salve nem mesmo os psicanalistas que temos cofres cheios dela. Para o vulgar contribuinte, a solidão resume-se a um vocábulo lamentoso ou a um fatalismo social de crédito comprovado, mas em boa verdade talvez não passe de uma metáfora do medo, simplesmente. Seja ela o que for, peço desculpa mas sem solidão ninguém vive. Solitário, não vamos mais longe, é este escritor que aqui está quando se entrega ao acto de escrever. Quer ele queira, quer não, só assim pode cumprir linha a linha a sua escrita na qualidade simultânea de autor e de leitor que são duas figuras distintas da Utopia de si mesmo. E depois? Há algum mal nisso?

De modo que fuma, José, deixa correr. Solidões, duplicações, masturbações, é tudo conversa ou pouco menos. Queimam os dedos, reduzem-nos a fibras secas se nos deixamos arrastar por elas. Concreto, concreto, só esse alguém que nos vigia, que te vigia, aí no espelho, e que nos escuta por dentro. Mas escutar, realmente? Para te ser sincero, ainda não percebi. Ainda não sei se... por arrogância, se por desconfiança que ele nos encara com tanta dureza.

Somos três agora. (Sempre fomos, tu é que não reparaste: dois que se olham e um terceiro que os escreve, olhando-se). No entanto, o rosto que nos é comum aos três está devastado pelo tempo. Esse aí não tarda muito que lhe caiam os dentes e fique coberto de rugas a bulir de vermes. Duvidas? Então espera por mais dois ou três outonos de cigarros e já vais ver. Três outonos, não lhe dou mais. Até lá vai continuar assim, em aresta viva, e com a tal contensão que, não sendo arrogância nem suspeita, ser o quê? Orgulho?

Não, orgulho, nem pensar. E se fosse, pior para ele que se calhar pouco fez para mudar o mundo e muito para não se deixar mudar. Aceitemos que é, antes, um endurecimento defensivo, para aí, sim. E aguardemos. O resto, Deus o dirá, se alguma vez o souber ler devidamente.

Tudo isto, já te disse, tem de ser encarado a vários ângulos. Sempre a vários ângulos, não te esqueças, porque, segundo alguns, os personagens deste tipo são de visagem errante. Como toda a gente? Como toda a gente, possível. Só que esse que tens diante de ti nunca na vida soube administrar a sua ima em pública, como se pode depreender logo à primeira abordagem. Porquê, não se sabe; as razões podem ser muitas. Pudor, impaciência, falta de traquejo, sei lá. Há também a independência, a independência... demasiado impeditiva, sempre foi, mas por essa ou por outras razões, a verdade é que esse talento nunca ele teve. E não se julgue que a lacuna não é grave porque a imagem de marca que os corretores das Letras e os lobbies da Opinião põem a circular no mercado a cotações de estarrecer. Ah, os lobbies, ah, os lobbies. Ah, perfumadas sacristias onde o livro em branco, antes de ser livro, já foi condenado ou marcado com uma pétala seca na página da eternidade.

Uma vez mais, silêncio, José mantém-se olhos nos olhos. Parece desconhecer que em qualquer álbum de glórias o verdadeiro retrato do paciente pode ser desfigurado com a mesma facilidade com que o fumo do cigarro o encobre ali no espelho. Nesse caso que se lixe e cara alegre, então não é?

Deixemo-lo portanto assim. Em directo e ao natural. Como se vê, tem o cabelo mais branco neste momento mas mantém a vislumbrada malícia de si mesmo que sempre se lhe conheceu. Pelo menos... o que eu penso - ou, antes, o que ele pensa. Vez por outra nota-se-lhe um perpassar de ironia pelo olhar, mas se o tem... luz breve e em geral magoada, não dá sequer para temperar o desalinho aparente que há nele e que provém mais de uma certa Lisboa à balda do que propriamente de outra coisa.

Quanto ao mais, pouco a acrescentar. Visagem martelada (já se disse), máscara prevenida, assimetrias de quem se talhou ao azar - e é tudo.

Ah, e os cigarros! Em 1990, este autor ainda continua a fumar, imagine-se, e a perguntar todos os dias E agora, José. A cada interrogação aspira, fundo e lento, até o morrão do cigarro abrir brasa no vidro do espelho, e há alturas em que encolhe os ombros e pensa de alto «Acta est fabula», se assim me posso exprimir em sinal de despedida.

Mas é um dizer por dizer, nada de especial. Quando menos se esperar, ele aí estará outra vez nesta cadeira e neste lugar, a fazer resumo e projecto de si mesmo, e diga-se de passagem que não se dá mal assim. Como sempre, não tem angústia nem surpresa porque vai encontrar alguém que amanhã, dia comum, recomeça de novo a vida na primeira linha do capítulo que se segue.

Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita.

E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.

Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?


Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 89-94