sexta-feira, 6 de junho de 2014

Soldados de uma Guerra dentro da Guerra






                                                                              «Cada homem carrega dentro de si
                                                                              o seu bestiário privado» - disse o Juiz

                                                                   
                                                                                                  José Cardoso Pires  «Ascenção e queda dos porcos Voadores»,
                                                                                                                                                            in «A República dos Corvos»

                                                                                                                  



   Tão, tão ao lado... uma outra guerra, um outro tempo, uma guerra de um outro tempo. De dimensões e humidades bíblicas, se é que me posso exprimir assim...  Imóvel; de trincheiras, lama e bichos. Bicheza ou bicharada como nunca ninguém havia ousado imaginar. Entre o fogo e o aço (e água, água vomitada das profundezas da terra, água derramada sob todas as formas e combinações - só; em bátegas, em intermináveis nevoeiros, tudo apodrecendo e atormentando, entranhando-se e molhando os próprios sonhos; água só em aparência suplício menor, mas não há maneira de não esquecermos essa realidade, respeitando e temendo a loucura de que só as coisas aparentemente inofensiveis conseguem obrar), forjada nessa loucura de uma Natureza libertada assim (como barragem colapsada), nesse apocalipse para cuja descrição ainda se não havia inventado linguagem, nasceu uma convivência entre homem e esses insuspeitados seres, de tão plena cidadania quanto nós (e é dizer pouco, ou insuficiente, pois nos antecedem e, tudo leva a crer, nos sobreviverão). Na verdade, a inexistência de um léxico que descrevesse e traduzisse essa nova realidade, tão cruamente exposta, tão súbita e brutal, era, em rigor, uma guerra. Desconheço critérios e instrumentos de medida que permitam comparar horrores. Por isso, e por esse lado me abstenho.
   Já quanto ao tempo, o dos homens, o comum, já esse se fala e «pensa». Mais uma razão para não brincarmos com o fogo, se é que nos queremos manter «secos», para aceitarmos que a crosta é frágil e pouco fazemos para merecermos a memória, as rugas, as cicatrizes...
   Os amnésicos, os que se acotevelam na pressa de nos foderem, em nome dos patacos e da inteligência, os que apenas «cumprem ordens» (ontem a fazerem o sabemos, hoje a inventarem, venderem e a produzirem sonhos), os sacerdotes do banal já ganharam a guerra, a que inventaram, bons netos de avôs mortos e mausoleados. Donos do poder, ignorantes (perigosos), analfabetos da história, hão-de nos precipitar a todos numa pequeníssima fenda sem nome (as notas de rodapé dispensam-nos).
   Resta-nos a consolação de que na lama, já não num holocausto de fogo e aço, mas antes num nevoeiro de átomos e deuses coléricos e famintos de nós, hão-de sobreviver os senão justos, ao menos merecedores. Já munidos de linguagem, forjando um tempo novo de maravilhas, de ilusões novas e que já cá não estaremos para o testemunhar.