domingo, 15 de junho de 2014

A dois tempos




     Depois dos cataplasmas, as ventosas, em seguida as sanguessugas, por fim as sangrias. Não se há-de ficar fraco, assim entregue a tamanhos tratamentos e pessoal domicílio-hospitalar? A, chamemos-lhe «vitalidade» que se vai nestas cenografias acaba por, aos poucos, nos retirar da (nossa) realidade. Ausentes, acabamos substituindo-a por uma encenação, que embora perfeita, não se invisibiliza a olhar atento... E, convenhamos, não deixa de ser tentadora toda aquela cenografia que vai do manipular dos corpos, ao elegante e harmónico ziguezaguiar por entre camas, mesinhas, tripés de soro, sem hesitações, tudo a velocidade marítima (a certa, a que tem que ser), como se não estivéssemos lá ou, estando, não fossemos tidos nem achados. Assim fosse a vida...

     Assim é a vida, penso olhando a ventoínha que me calhou numa quase vertical, sentindo a morfina a alcatifar-me um abandono morno. Tudo o resto perde nitidez. O mundo é a brisa do tecto e o movimento hipnótico, a visão de me ver cada vez mais longe, no convés daquele paquete de outros tempos. O sentir-me desprotegido sob o céu de gaivotas, afasta-me da amurada pois adivinho a água do oceano invisível, coberta de ovos, pequenos seixos animais.

   Por entre as migalhas de tempo, caídas no chão, sei que não estou no cais para cerimónias de despedidas. Não nos despedimos de nós e aquele que vejo (e me reconheço) a afastar-se numa viagem sem regressso já é o meu cadáver do insuspeitado naufrágio que, na agitação do oceano ocorrerá e ao qual dos céus apenas explodirá a confusão placentária de algo que já me não diz respeito.

   Aconchego-me à lã, descubro-me esfomeado e reentro na cidade. Às vezes o cinzentismo do que vejo e oiço, do que cheiro e me isola, parece-me, não o retrato, mas a verdadeira imagem de alguém.