terça-feira, 12 de novembro de 2013

Roberto Bolaño sob protesto...

... pela tradução de António José Viegas



DEVOÇÃO DE ROBERTO BOLAÑO

Em finais de 1992 ele estava muito doente
e tinha-se separado da sua mulher.
Essa era a puta da verdade:
estava só e fodido
e costumava pensar que lhe restava pouco tempo.
Mas os sonhos, alheios à doença,
vinham todas as noites
com uma fidelidade que conseguia assombrá-lo.
Os sonhos que o transportavam para esse país mágico
A que ele e ninguém mais chamava México D.F. *
E Lisa e a voz de Mario Santiago**
lendo um poema
e tantas outras coisas boas e dignas
dos mais calorosos elogios.
Doente e só, ele sonhava
e defrontava os dias que se dirigiam
até ao fim de outro ano.
E de tudo isso extraía um pouco de força e coragem.
México, os passos fosforecentes da noite,
a música que se ouvia nas esquinas
onde antes as putas gelavam
(no coração de gelo de Colonia Guerrero ***)
proporcionavam-lhe o alimento de que necessitava
para cerrar os dentes
e não chorar de medo.

* - Distrito Federal do México (Cidade do México)
** - Mario Santiago (1953-1988) era um dos companheiros de Roberto Bolaño, e é considerado o fundador do infrarealismo. É personagem de Bolaño em Os Detectives Selvagens. O primeiro manifesto do infrarealismo foi assinado por Bolaño em 1976.
*** - Zona residencial e popular no noroeste da Cidade do México 


 
LISA

Quando Lisa me disse que tinha feito amor
com outro, na velha cabina telefónica daquele
armazém de Tepeyac, julguei que o mundo
terminava para mim. Um tipo alto e magro e
com o cabelo comprido e uma verga grossa que não esperou
mais de um encontro para penetrá-la até ao fundo.
Não é uma coisa séria, disse ela, mas é
a melhor maneira de tirar-te da minha vida.
Parménides Garcia Saldaña * tinha o cabelo farto e podia
ter sido o amante de Lisa, mas alguns
anos depois soube que tinha morrido numa clínica psiquiátrica
ou que se tinha suicidado. Lisa já não queria
dormir mais com perdedores. Às vezes sonho
com ela e imagino-a feliz e fria num México
desenhado por Lovecraft. Escutamos música
(Canned Heat **, um dos grupos preferidos
de Parménides Garcia Saldaña) e depois fazemos
amor três vezes. Da primeira vez veio-se dentro de mim,
da segunda veio-se na minha boca e, da terceira, apenas um fio
de água, um pequeno fio de pesca, entre os meus seios. E tudo
em duas horas, disse Lisa. As duas piores horas da minha vida,
disse eu do outro lado do telefone.



* Parménides Garcia Saldaña (1944-1982), escritor mexicano, apaixonado por J.D.Salinger, Norman Mailer, rock e marxismo. É autor de “Pasto Verde” ou de “En la Ruta de la Onda”, livro emblemático da chamada «Literatura de la Onda».

** Os Canned Heat eram uma banda de rock e de blues que chegou a actuar no Festival de Wooodstck. O baterista, Adolfo “Fito” de la Parra (n.1946) era Mexicano, acompanhou Etta James, os Platters ou as Shirelles, e tem mesmo um álbum intitulado “Fito de la Parra Drum Solos”. O guitarrista era Bob Hite (1945-1981), e o primeiro líder da banda Alan “Blind Owl” Wilson (1943-1970), que tocou com John Lee Hooker (este considerava-o o mais talentoso na harmónica) ou Jimi Hendrix. As duas canções mais famosas da banda eram “Going Up the Country” e “On the Road Again”.