Um Percurso O’Neilliano
“Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade”
Ruy Belo
Quem sai do jardim do Príncipe Real em direcção ao Largo do Rato, em Lisboa, e percorre a Rua da Escola Politécnica, passa por um prédio de três andares, forrado de azulejos azuis, à direita, um pouco antes da entrada para o Jardim Botânico. O 2º andar deste nº 48 foi a última casa de Alexandre O’Neill. “Uma sala, um quarto cheio de livros, um corredor, outro quarto lá no fundo…. das traseiras via-se o jardim da Faculdade de Ciências.”(João Pulido Valente) Outra visão da mesma casa, de Fernando Assis Pacheco, ao entrevistá-lo em 82: “Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso dos livros: a poesia em força, mas também as artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever ‘HCESAR’. Cinzeiros. Luz sem excesso.” (1) Viveu nesta casa mais de uma década, até partir para o hospital, onde permaneceu ainda cinco meses. Mas muito da vida anterior de Alexandre O’Neill se passou por aqui. Muitos fantasmas cruzam este bairro, que permanece inalterado há tanto tempo. Ele é agora um deles, mas havia outros, anteriores, que lhe atravessaram a vida e a poesia. Visite-o o leitor, e concluirá que é fácil amar estas ruas.
Continuemos então o percurso, o leitor comigo. Mais à frente, do outro lado da rua, é a pastelaria Cister, onde ia ultimamente beber a bica e o uísque. A Cister, porém, está muito mudada. Tal como a Alsaciana, que frequentava com o João Pulido Valente e o Arnaldo Aboim nos anos 50. A Alsaciana é um pouco mais à frente, quase na esquina com a Rua de S. Mamede. Retrocedamos e voltemos as costas ao Largo do Rato: na Politécnica, virados para oriente, passamos por várias ruas que descem à direita, em direcção à Praça das Flores. Na primeira, a Rua da Imprensa Nacional, onde há agora uma loja de tapetes, era o Esteves, a tasca do galego que foi sala de jantar de Alexandre O’Neill durante uns anos, onde conheceu Noémia Delgado. Paralela a esta, a Calçada Engenheiro Miguel Pais, onde vivia o Arnaldo Aboim, e o próprio O’Neill no nº 47 – 4º, no início dos anos 60, dividido entre o lar conjugal e a casa da namorada inglesa, Pamela. Desçamos a seguinte, a Rua do Monte Olivete, passemos à frente das janelas por detrás das quais este livro está sendo escrito, e penetremos no interior do bairro. Ao fundo, no nº 4, morava a Noémia num quarto alugado quando conheceu Alexandre. Ruben A. também viveu aqui, a meio da rua, quando começa a entrever-se à esquerda o palacete que abriga o British Council – é por esta rua que o leitor deve agora enveredar: passará então à porta da desaparecida tasca do Serafim, no número 24 da Rua Luís Fernandes, poiso habitual de Alexandre O’Neill nos anos 60. “O Serafim é fundamental. Era o fornecedor local. Era o restaurante onde nós vivíamos, era o nosso restaurante, uma espécie de exchange. Era o Serafim que nos arranjava o queijo da Serra, era o Serafim que nos arranjava os uísques, era o Serafim que nos arranjava o vinho, era o Serafim que nos trocava os cheques, que nos emprestava o dinheiro. Era uma espécie de entreposto (risos). E era um homem fabuloso. E não havia nada a fazer. Nesse tempo não se estava em casa. Não havia atendedores de chamadas nem voicemail, e ia tudo para o Serafim. Dávamos o telefone do Serafim: ‘Se quiseres deixar-me recado, ligas para o Serafim.’ Era uma espécie de secretário, amigo, conselheiro.”(Fernando Matos Silva)
Uns passos adiante do Serafim, a Rua Luís Fernandes acaba e encontra a Rua de S. Marçal na altura em que ela, passada a descida abrupta inicial, desce suavemente até à Praça das Flores. No nº 160, um rés-do-chão mínimo com uma janela para a rua, viveu O’Neill no final da década de 60. Chamava-lhe o camarote dos irmãos Marx – enchia a casa de amigos, cabia sempre mais um: muita gente, muita animação. Dali mudou-se um pouco mais para cima, para a casa de azulejos azuis na Politécnica. Mas nós vamos para baixo, descendo sempre a S. Marçal, deixando para trás, à direita, a Praça das Flores, até encontrarmos a Travessa da Piedade. Devemos agora subir, à esquerda, sem perder de vista a palmeira que começa a entrever-se logo que se inicia a subida. E chegamos à Travessa da Palmeira, onde Alexandre e Noémia viveram uns meses do ano de 59, e foram vizinhos de Ruy Cinatti. Onde a Travessa faz uma curva, fica o nº 12 (eles viveram no 3º esquerdo), o tal casarão de grandes reposteiros que fazia medo à Noémia, à espera de um filho e do Alexandre, que regressava tarde do trabalho nas Bibliotecas.
Continuando pela Travessa do Jasmim, desembocamos num largo onde convergem a Rua Ruben A. Leitão, a Cecílio de Sousa, a Rua da Palmeira e a Rua do Jasmim. Tomemos esta última, que sobe até ao jardim do Príncipe Real. Chegamos finalmente à primeira casa que O’Neill habitou no bairro, o nº 18. O Alexandre e a Noémia viviam no último andar, e costumavam ir para o telhado ver as estrelas e o céu de Lisboa. Entremos na casa, acompanhados agora da primeira mulher do poeta, Noémia Delgado: uma casa esconsa, muito iluminada. Um corredor com muitas portas; pequenas divisões intercomunicantes: a sala das grandes jantaradas, o atelier de escultura da Noémia, o escritório do Alexandre, ao fundo. Da janela vêem-se casas, Lisboa a perder de vista, com a Basílica da Estrela à esquerda, que O’Neill chamava o garrafão de água do Luso. O Xaninha comia a papa sentado no parapeito da janela. “O Alexandre não costumava ler aos amigos. Era muito secreto nas suas coisas. Mas quando escreveu Portugal, lembro-me de ele me ter acordado para ler o poema. Eu fui ao escritório, muito estremunhada, a meio da noite. Eu disse: ‘Isso é um espanto, uma maravilha.’ ‘O que é que tu achas? Não sei, não sei’, dizia ele. Era um poema magnífico. Mesmo em frente do escritório era o nosso quarto. Era um quarto de amor. Havia uma carta de amor metida numa gaveta dum armário que desapareceu.”(Noémia Delgado)
Saiamos do nº 18 e viremos para cima, para o Jardim, que fica a dois passos: eis-nos, leitor, chegados ao sítio de onde partimos. Mas é melhor que cheguemos num dia de sol, pois só assim se tem a plena visão do ambiente. No Jardim do Príncipe Real sentam-se há anos as mesmas figuras de velhos, características e inconfundíveis. O jardim é o lugar-comum dos velhos. São certamente ainda os mesmos que O’Neill levou para a poesia, num misto de crueldade e de ternura: velhos, muitos velhos a jogar às cartas, a descansar os rins, a falar das doenças e dos netos, expostos ao sol como lagartos, “velhas atrozes, saídas / de tugúrios impossíveis” , velhas bondosas, sentimentais, traquinas, os olhos embaciados perdidos no baloiçar das crianças, que as há em quantidade também. Mas as crianças são o lugar-comum da poesia rasteira, e O’Neill preferia olhar para os velhos: “Velhos, ó meus queridos velhos, / saltem-me para os joelhos: / vamos brincar?” (2)
Se seguirmos na direcção do miradouro de S. Pedro de Alcântara, passamos a descida da Patriarcal. Lá em baixo, quase junto à Praça da Alegria, foi a primeira casa do Xana, aquele quarto andar alto de onde, miúdo tristonho, espreitava o desenrolar da vida cá em baixo na rua íngreme. Mas nós não vamos descer. Continuamos, sim, pela D. Pedro V até à Rua de S. Pedro de Alcântara: no nº 45 – 1º era a Telecine, onde O’Neill trabalhou na década de 60 durante oito anos (embora, ao que tudo indica, com intermitências). Pode o leitor fazer aqui uma pausa, entrando no Solar do Vinho do Porto, no rés-do-chão da antiga Telecine, e sentar-se a beber um copinho num cenário que o fará reviver a época – embora não se possa dizer que o vinho do Porto fosse das bebidas preferidas do poeta. Caminhando sempre pela Sétima Colina, encontramos a Rua da Misericórdia, que também tem muitas histórias para contar. Era aqui a editora Guimarães (no nº 68, onde permanece), a Bibliófila (onde se realizou a II Exposição do grupo surrealista dissidente), e a Revista Almanaque, na sobreloja do nº 125. A Rua da Misericórdia – que naquele tempo era ainda conhecida por Rua do Mundo, seu nome antigo, bem mais bonito – acaba em pleno Chiado. Devemos agora contornar a Igreja do Loreto e subir um pouco da Rua Nova da Trindade: a casa alta que faz esquina com a travessa do mesmo nome foi o local da Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, um quarto andar que António Pedro alugou para o efeito.
Neste momento, leitor, em que o percurso poderia continuar por várias outras zonas de Lisboa, sugiro ainda que apanhe o eléctrico 28 aqui mesmo no Chiado, se deixe regaladamente levar até ao lado oriental da cidade e desça na paragem a seguir à Sé. Aí perto, na Rua da Saudade, encontrará outra casa de Alexandre O’Neill, que ele também inscreveu na poesia, ao convidar o poeta brasileiro Manuel Bandeira para este seu tugúrio: “E em minha casa, à Rua da Saudade, a cavaleiro do rio, / Você podia fumar escondido dos adultos / como na outra Saudade do seu Recife menino.” (3)
Esta casa, amplamente virada para o Tejo e para o “céu inocente de Lisboa” (4), foi um dos seus refúgios intermitentes a partir de meados dos anos 60, antes de regressar definitivamente ao Príncipe Real, no início da década seguinte. Desde que conheci a casa da Rua da Saudade, em Setembro de 2001, sempre intuí, por imaginação puramente literária, que O’Neill tinha escrito aqui a letra do fado Gaivota, numa manhã em que se chegasse à janela do quarto dos fundos: “Nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, / esmorece e cai no mar.” Mas vim a descobrir que não: quando ele descobriu esta casa, a Gaivota já andava a ser cantada – e, ao que parece, a génese da sua escrita pode situar-se noutro sítio mítico de Lisboa, que se avista, grandioso, das janelas da Rua da Saudade: o Terreiro do Paço.
1. Entrevista ao JL, 6/7/82.
2. Velhos de Lisboa, ABANDONO VIGIADO, 1960. Ver ainda os poemas Os Lagartos ao Sol (DE OMBRO NA OMBREIRA, 1962); Velhos/1, Velhos/2, Velhos/3, Velhos/4, Velhos/5 (A SACA DE ORELHAS, 1979).
3. Alô Vôvô!, dedicado a Manuel Bandeira, Diário Popular, 26/5/66; republicado em DE OMBRO NA OMBREIRA, 1969.
4. Poesia e Propaganda, NO REINO DA DINAMARCA, 1958.
Maria Antónia Oliveira, in "Alexandre O'Neill, uma biografia literária" (Edições Dom Quixote, 2007)