sexta-feira, 11 de abril de 2014

Aproveitar a boleia... (os dias em que me faltas, cidade)








Um Percurso O’Neilliano



“Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade”
                              Ruy Belo



Quem sai do jardim do Príncipe Real em direcção ao Largo do Rato, em Lisboa, e percorre a Rua da Escola Politécnica, passa por um prédio de três andares, forrado de azulejos azuis, à direita, um pouco antes da entrada para o Jardim Botânico. O 2º andar deste nº 48 foi a última casa de Alexandre O’Neill. “Uma sala, um quarto cheio de livros, um corredor, outro quarto lá no fundo…. das traseiras via-se o jardim da Faculdade de Ciências.”(João Pulido Valente) Outra visão da mesma casa, de Fernando Assis Pacheco, ao entrevistá-lo em 82: “Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso dos livros: a poesia em força, mas também as artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever ‘HCESAR’. Cinzeiros. Luz sem excesso.” (1) Viveu nesta casa mais de uma década, até partir para o hospital, onde permaneceu ainda cinco meses. Mas muito da vida anterior de Alexandre O’Neill se passou por aqui. Muitos fantasmas cruzam este bairro, que permanece inalterado há tanto tempo. Ele é agora um deles, mas havia outros, anteriores, que lhe atravessaram a vida e a poesia. Visite-o o leitor, e concluirá que é fácil amar estas ruas.

Continuemos então o percurso, o leitor comigo. Mais à frente, do outro lado da rua, é a pastelaria Cister, onde ia ultimamente beber a bica e o uísque. A Cister, porém, está muito mudada. Tal como a Alsaciana, que frequentava com o João Pulido Valente e o Arnaldo Aboim nos anos 50. A Alsaciana é um pouco mais à frente, quase na esquina com a Rua de S. Mamede. Retrocedamos e voltemos as costas ao Largo do Rato: na Politécnica, virados para oriente, passamos por várias ruas que descem à direita, em direcção à Praça das Flores. Na primeira, a Rua da Imprensa Nacional, onde há agora uma loja de tapetes, era o Esteves, a tasca do galego que foi sala de jantar de Alexandre O’Neill durante uns anos, onde conheceu Noémia Delgado. Paralela a esta, a Calçada Engenheiro Miguel Pais, onde vivia o Arnaldo Aboim, e o próprio O’Neill no nº 47 – 4º, no início dos anos 60, dividido entre o lar conjugal e a casa da namorada inglesa, Pamela. Desçamos a seguinte, a Rua do Monte Olivete, passemos à frente das janelas por detrás das quais este livro está sendo escrito, e penetremos no interior do bairro. Ao fundo, no nº 4, morava a Noémia num quarto alugado quando conheceu Alexandre. Ruben A. também viveu aqui, a meio da rua, quando começa a entrever-se à esquerda o palacete que abriga o British Council – é por esta rua que o leitor deve agora enveredar: passará então à porta da desaparecida tasca do Serafim, no número 24 da Rua Luís Fernandes, poiso habitual de Alexandre O’Neill nos anos 60. “O Serafim é fundamental. Era o fornecedor local. Era o restaurante onde nós vivíamos, era o nosso restaurante, uma espécie de exchange. Era o Serafim que nos arranjava o queijo da Serra, era o Serafim que nos arranjava os uísques, era o Serafim que nos arranjava o vinho, era o Serafim que nos trocava os cheques, que nos emprestava o dinheiro. Era uma espécie de entreposto (risos). E era um homem fabuloso. E não havia nada a fazer. Nesse tempo não se estava em casa. Não havia atendedores de chamadas nem voicemail, e ia tudo para o Serafim. Dávamos o telefone do Serafim: ‘Se quiseres deixar-me recado, ligas para o Serafim.’ Era uma espécie de secretário, amigo, conselheiro.”(Fernando Matos Silva)

Uns passos adiante do Serafim, a Rua Luís Fernandes acaba e encontra a Rua de S. Marçal na altura em que ela, passada a descida abrupta inicial, desce suavemente até à Praça das Flores. No nº 160, um rés-do-chão mínimo com uma janela para a rua, viveu O’Neill no final da década de 60. Chamava-lhe o camarote dos irmãos Marx – enchia a casa de amigos, cabia sempre mais um: muita gente, muita animação. Dali mudou-se um pouco mais para cima, para a casa de azulejos azuis na Politécnica. Mas nós vamos para baixo, descendo sempre a S. Marçal, deixando para trás, à direita, a Praça das Flores, até encontrarmos a Travessa da Piedade. Devemos agora subir, à esquerda, sem perder de vista a palmeira que começa a entrever-se logo que se inicia a subida. E chegamos à Travessa da Palmeira, onde Alexandre e Noémia viveram uns meses do ano de 59, e foram vizinhos de Ruy Cinatti. Onde a Travessa faz uma curva, fica o nº 12 (eles viveram no 3º esquerdo), o tal casarão de grandes reposteiros que fazia medo à Noémia, à espera de um filho e do Alexandre, que regressava tarde do trabalho nas Bibliotecas.

Continuando pela Travessa do Jasmim, desembocamos num largo onde convergem a Rua Ruben A. Leitão, a Cecílio de Sousa, a Rua da Palmeira e a Rua do Jasmim. Tomemos esta última, que sobe até ao jardim do Príncipe Real. Chegamos finalmente à primeira casa que O’Neill habitou no bairro, o nº 18. O Alexandre e a Noémia viviam no último andar, e costumavam ir para o telhado ver as estrelas e o céu de Lisboa. Entremos na casa, acompanhados agora da primeira mulher do poeta, Noémia Delgado: uma casa esconsa, muito iluminada. Um corredor com muitas portas; pequenas divisões intercomunicantes: a sala das grandes jantaradas, o atelier de escultura da Noémia, o escritório do Alexandre, ao fundo. Da janela vêem-se casas, Lisboa a perder de vista, com a Basílica da Estrela à esquerda, que O’Neill chamava o garrafão de água do Luso. O Xaninha comia a papa sentado no parapeito da janela. “O Alexandre não costumava ler aos amigos. Era muito secreto nas suas coisas. Mas quando escreveu Portugal, lembro-me de ele me ter acordado para ler o poema. Eu fui ao escritório, muito estremunhada, a meio da noite. Eu disse: ‘Isso é um espanto, uma maravilha.’ ‘O que é que tu achas? Não sei, não sei’, dizia ele. Era um poema magnífico. Mesmo em frente do escritório era o nosso quarto. Era um quarto de amor. Havia uma carta de amor metida numa gaveta dum armário que desapareceu.”(Noémia Delgado)

Saiamos do nº 18 e viremos para cima, para o Jardim, que fica a dois passos: eis-nos, leitor, chegados ao sítio de onde partimos. Mas é melhor que cheguemos num dia de sol, pois só assim se tem a plena visão do ambiente. No Jardim do Príncipe Real sentam-se há anos as mesmas figuras de velhos, características e inconfundíveis. O jardim é o lugar-comum dos velhos. São certamente ainda os mesmos que O’Neill levou para a poesia, num misto de crueldade e de ternura: velhos, muitos velhos a jogar às cartas, a descansar os rins, a falar das doenças e dos netos, expostos ao sol como lagartos, “velhas atrozes, saídas / de tugúrios impossíveis” , velhas bondosas, sentimentais, traquinas, os olhos embaciados perdidos no baloiçar das crianças, que as há em quantidade também. Mas as crianças são o lugar-comum da poesia rasteira, e O’Neill preferia olhar para os velhos: “Velhos, ó meus queridos velhos, / saltem-me para os joelhos: / vamos brincar?” (2)

Se seguirmos na direcção do miradouro de S. Pedro de Alcântara, passamos a descida da Patriarcal. Lá em baixo, quase junto à Praça da Alegria, foi a primeira casa do Xana, aquele quarto andar alto de onde, miúdo tristonho, espreitava o desenrolar da vida cá em baixo na rua íngreme. Mas nós não vamos descer. Continuamos, sim, pela D. Pedro V até à Rua de S. Pedro de Alcântara: no nº 45 – 1º era a Telecine, onde O’Neill trabalhou na década de 60 durante oito anos (embora, ao que tudo indica, com intermitências). Pode o leitor fazer aqui uma pausa, entrando no Solar do Vinho do Porto, no rés-do-chão da antiga Telecine, e sentar-se a beber um copinho num cenário que o fará reviver a época – embora não se possa dizer que o vinho do Porto fosse das bebidas preferidas do poeta. Caminhando sempre pela Sétima Colina, encontramos a Rua da Misericórdia, que também tem muitas histórias para contar. Era aqui a editora Guimarães (no nº 68, onde permanece), a Bibliófila (onde se realizou a II Exposição do grupo surrealista dissidente), e a Revista Almanaque, na sobreloja do nº 125. A Rua da Misericórdia – que naquele tempo era ainda conhecida por Rua do Mundo, seu nome antigo, bem mais bonito – acaba em pleno Chiado. Devemos agora contornar a Igreja do Loreto e subir um pouco da Rua Nova da Trindade: a casa alta que faz esquina com a travessa do mesmo nome foi o local da Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, um quarto andar que António Pedro alugou para o efeito.

Neste momento, leitor, em que o percurso poderia continuar por várias outras zonas de Lisboa, sugiro ainda que apanhe o eléctrico 28 aqui mesmo no Chiado, se deixe regaladamente levar até ao lado oriental da cidade e desça na paragem a seguir à Sé. Aí perto, na Rua da Saudade, encontrará outra casa de Alexandre O’Neill, que ele também inscreveu na poesia, ao convidar o poeta brasileiro Manuel Bandeira para este seu tugúrio: “E em minha casa, à Rua da Saudade, a cavaleiro do rio, / Você podia fumar escondido dos adultos / como na outra Saudade do seu Recife menino.” (3)

Esta casa, amplamente virada para o Tejo e para o “céu inocente de Lisboa” (4), foi um dos seus refúgios intermitentes a partir de meados dos anos 60, antes de regressar definitivamente ao Príncipe Real, no início da década seguinte. Desde que conheci a casa da Rua da Saudade, em Setembro de 2001, sempre intuí, por imaginação puramente literária, que O’Neill tinha escrito aqui a letra do fado Gaivota, numa manhã em que se chegasse à janela do quarto dos fundos: “Nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, / esmorece e cai no mar.” Mas vim a descobrir que não: quando ele descobriu esta casa, a Gaivota já andava a ser cantada – e, ao que parece, a génese da sua escrita pode situar-se noutro sítio mítico de Lisboa, que se avista, grandioso, das janelas da Rua da Saudade: o Terreiro do Paço.

1. Entrevista ao JL, 6/7/82.
2. Velhos de Lisboa, ABANDONO VIGIADO, 1960. Ver ainda os poemas Os Lagartos ao Sol (DE OMBRO NA OMBREIRA, 1962); Velhos/1, Velhos/2, Velhos/3, Velhos/4, Velhos/5 (A SACA DE ORELHAS, 1979).
3. Alô Vôvô!, dedicado a Manuel Bandeira, Diário Popular, 26/5/66; republicado em DE OMBRO NA OMBREIRA, 1969.
4. Poesia e Propaganda, NO REINO DA DINAMARCA, 1958.


Maria Antónia Oliveira, in "Alexandre O'Neill, uma biografia literária" (Edições Dom Quixote, 2007)