quinta-feira, 17 de abril de 2014

Álvaro de Campos a dobrar (...fazia tempo)




Apostila (11-4-1928)

Aproveitar o tempo!  
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?  
Aproveitar o tempo!  
Nenhum dia sem linha...  
O trabalho honesto e superior...  
O trabalho à Virgílio, à Mílton...  
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!  
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio! 

Aproveitar o tempo!  
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -  
Para com eles juntar os cubos ajustados  
Que fazem gravuras certas na história  
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...  
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,  
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,  
E a vontade em carambola difícil. 
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -  
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida. 
Verbalismo... 
Sim, verbalismo... 
Aproveitar o tempo! 
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça... 
Não ter um acto indefinido nem factício... 
Não ter um movimento desconforme com propósitos... 
Boas maneiras da alma... 
Elegância de persistir... 
Aproveitar o tempo!  
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.  
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.  
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.  
Aproveitar o tempo!  
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.  
Aproveitei-os ou não?  
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! 
(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo  
No comboio suburbano,  
Chegaste a interessar-te por mim?  
Aproveitei o tempo olhando para ti? 
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante? 
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?  
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?) 
Aproveitar o tempo!  
Ah, deixem-me não aproveitar nada!  
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...  
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,  
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,  
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,  
O pião do garoto, que vai a parar,  
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,  
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.




Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!