segunda-feira, 23 de maio de 2011

Grupo Jerónimo Martins: outra vida para a caixeira Isilda («menina» para a arreliar...), ou, ao menos, aumento salarial



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Tem cara de perder. Esta semana
voltou a não levar preservativos
e nunca mais comprou comida para o cão.
Se calhar divorciaram-se e ficou ela
com o bicho. Só não percebo como é que
ele sózinho consegue beber tanto leite.
Perdeu também um pouco da arrogância
com que habitualmente me passava
o visa. Mas devia ser bonito em novo.

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Não me vêem. Ainda bem.
Fiquei de apanhar a Raquel
no infantário e não tenho como dizer
ao Jorge que a puta da Irene
faltou e já não dá. Beijam-se,
cospem-se assim de afecto
como eu (nós?) há dez anos.
Mal ouvem a conta ou isto tudo
que me gane dentro numa
servil polidez. Apetecia-me dizer
«foda-se!» - o vosso amor, o meu.
E o pior é que não posso.

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A mulher ainda não meteu na cabeça
que não me pagam para psicanalista.
Eu sei que a velhice é lixada e que
a reforma dela consegue ser ainda mais
miserável do que o ordenado que me obriga
a mudar de sorriso várias vezes por dia.

É o habitual do costume: bolachas, dois
ou três iogurtes, fruta - enquanto me atropela
com lamúrias e reumatismos e pede outra vez
mais sacos (ela que até na produção de lixo
é pobre). Gostava de lhe poder dizer um dia
como detesto que me chame «menina»
com tão poucos dentes e catarro à farta.

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Estou a ver o estilo, folha de canábis
ao peito, os óculos de Foucalt
não-li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
esta gente custa - e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologia
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o mau gosto.

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É o que se chama um «higiénico»: latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato.
É tímido, inseguro e - por isso mesmo -
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.

Manuel de Freitas, in "A Última Porta" (Assírio & Alvim, 2010)

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