sábado, 4 de outubro de 2014

Quereres... Vontades



                                                Paul Klee, "Sealed woman",(1930). Watercolour, pen and ink on paper

   Volta-me o sangue à alma. Vá, rigor: lentamente, agora que adormeci torno a sentir o sangue a regar-me a alma. Embora me deixe indiferente (evito a expressão «estados de alma») doía-me já a secura na boca, nos olhos, nas evocações que não somos capazes de evitar.

   Embora o saiba (desde) sempre, assusta-me a morte insone. É ao que se arrisca quem vai ao aeroporto apanhar o comboio, quem se julgou dispensado da missa e desdenhou o baptismo. Neste poço fundo onde sonho o escuro não é ausência de luz mas sim uma parede viva de cimento e pedra. Quem mergulha na culpa, entope-se de pecado ou renascerá despessoado, finalmente entregue à liberdade?


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O que calo e descubro, como morro e o que encubro





“BOO BOO BABY I'M A SPY”

I'm involved in a dangerous game, 
Every other day I change my name, 
The face is different but the body's the same, 
Boo, boo, baby, I'm a spy! 
You have heard of Mata Hari, 
We did business cash and carry, 
Poppa caught us and we had to marry, 
Boo, boo, baby, I'm a spy! 
Now, as a lad, I'm not so bad, 
In fact, I'm a darn good lover, 
But look my sweet, let's be discreet, 
And do this under cover. 
I'm so cocky I could swagger, 
The things I know would make you stagger, 
I'm ten percent cloak and ninety percent dagger, 
Boo, boo, baby, I'm a spy! 

(Instambul, anos 40)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Queijos e Beijos




   Podiam (porra!) ser só gulodices, desabafos e ternuras. Levezas (mesmo que em prosa amolgada e dorida). Saudades escritas, cicatrizes, orgulhosa e infantilmente exibidas, sentimentos bem comportados e por aqui ficávamos.
   Mas, dias assim nascem enevoados, acordam-nos para o vazio a que nos sabe a vida que temos e desesperam-nos (ao espoliar-nos da pouca esperança a que recorremos esperando que «as coisas passem», se componham e que uma grande amnésia rate de nós aquilo que por um momento, suspeitamos ou apercebemos não percebermos patavina. A forte suspeita de atravessarmos os dias à deriva por entre mapas e instrumentos de navegação, embora secos e seguros, abrigados de sol, de sal, de tempestade, enfim imunes às incertezas mas prontos a cedência (ou será desistência?). Que nome dar, então, a esse grande vazio, a essa dôr canibal, pronta a tudo devorar? Se sabes como calar gritos e vazios em que o meu peito se acinzenta... onde as sombras, imensas e coladas às paredes não são mais do que a própria evidência do inverossímil, então ensina-me como me ensinaste o resto, de bisturí e olhar triste. Até lá, atropelo palavras (sei-o eu e certamente o sentirás tu) como a última forma única. A que me resta, e de que ainda sou capaz de me lembrar.

                                                                                                                (29.09.2014, 23h …)


   Acordo, como tantas vezes, nestes últimos, cada vez mais frequentes dias: a minha mão tacteando a tua ausência, palpando a roupa fria, apurando o ouvido, demorando até me convencer que não foste à casa de banho. Não estás...ou antes não estivesses e eu não dormisse com esse cadáver cujo perfume sinto, cujo peito procuro invariavelmente, em cujos cabelos gosto de me afogar, cujas costas desço e coxas subo. Criou-se uma espécie de combinação e eu gosto de adormecer dentro de ti. 
   Alguém escolhe(rá) por nós onde acordaremos... no campo como gostas... contigo como gosto. Com cheiro a pão e a café ,demorando o abrir os olhos, ouvindo-te na ponta dos pés, adivinhando-te a abrir umas velhas e rangentas portadas de madeira onde o sol entrará se sobre uma velha cómoda estiver, despretensioso, um arranjo de pequenas flores selvagens, ou, numa corrida sorridente envergando a tua nudez, sob lã ou flanelas. A fome num fotograma.

                                                                                                                      (30.09.2014, 05h ...)      



quinta-feira, 18 de setembro de 2014

I Hope You Enjoy Your Edens Garden




     Certo? Nem me  parece, nem me apetece. Já vai sendo tempo de calar, modesta mas não subserviente  «o que é», (o que já cá estava e nos há-de sobreviver). Fraquezas gerais, ainda que mal distribuídas, resquícios, longuínquas memórias do momento que pela sua intensidade e não cabendo em indivíduos, resultou em tribo, espécie, em cada ramo do futuro, adjectivo ou substantivo. No fundo é a nossa aventura, a história que nos restou, o enredo a que nos condenamos. Uma brincadeira sem graça, um bocejo de deuses infantis e aborrecidos. Fatalmente correremos o mundo de ordem de despejo em ordem de despejo, vomitados à rua expulsos porque nos aterra a quadrícula de uma janela penal, a distância medida a passos e memórias que nos atormentam as noites. Uma penitenciária não foi construida para almas sensíveis, e nos catres camilianos, embora insalúbres, sempre se traficou a libra de ouro e nunca se prestou grande importância ao vento, origem de tosses e sombras. Nem a palha, enxerga  mijada, exagero romântico é o verdadeiro cemitério novecentista. Graças a Deus e à nossa sempre oportuna amnésia, os perigos habitam as pedras e não os seres. Correntes de ar, passos arrastados, vidas fétidas... mas isso é o narrador a falar.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Terça-Feira


     Terça-feira é já um terrível final de semana, ou é a antecipação dele? Alguém me dá lume, por favor?
     Aos três anos (ainda) não era deste mundo... aos cinquenta e três, (já) não sou de nenhum. Foi quase com um sentido de dever que postei a fotografia da fotógrafa militante, já não dos panfletários ícones, mas das íntimas e solitárias viagens. Como não pressentir a morte que virá no ano seguinte? Através do meu olhar subjectivo a certeza de estar perante um dos "melhores" retratos da morte (e as duas palavras foram muito meditadas antes de as escrever), e do fascínio de uma imagem que esconde pelo menos tanto quanto expõe. Poderia ser vice-versa. Não é para todos. Não é, decerto, para mim...



                           Dorothea_Lange  "Bad Trouble over the Weekend" (1964)