quarta-feira, 25 de março de 2015

Herberto Hélder



 

Quarta-feira, 25 de Março de 2015 (2 dias após a morte do poeta) a memória impõe-se serena e luminosa como devia, sempre, ser... e como, quando matéria-prima da poesia, é:

   "O que é citável de um livro, de um autor? Decerto a sua morte pode ser citável. E sobretudo o seu silêncio".

   Mais um parágrafo, folha ou capítulo desta obra invisível, mas dizível, apesar ou por causa do silêncio evocado por HH.



terça-feira, 17 de março de 2015

O entrepreneur e o poeta


    Andando em limpezas blogueiras topei com este rascunho que, por alguma razão já esquecida, não publiquei então (Maio de 2014). Infelizmente que o quase ano entretanto passado não o ocultaram sob a camada do pó com que as coisas sem importância ou de actualidade «desactualizada» costumam desaparecer. Por isso me decidi a colocá-lo.




Idílio Freire



Ricardo Diniz




Por que viajamos? Por escape temporário do quotidiano. Para nos escondermos de nós próprios e dos outros, ou para nos reencontramos. Há quem parta apenas para voltar. Para na ausência se lembrar do que deixou. Outros viajam para aprender, trazendo conhecimento na bagagem. Também há quem só traga compras. Para esses o mundo é um imenso centro comercial.

O estatuto social pode ser outra força motriz, típica de quem viaja para se exibir no regresso. Cada vez mais, hoje, existe também quem o faça anunciando aos sete ventos o seu propósito, fazendo da viagem um acontecimento, uma performance de superação, já não apenas para si, mas com mensagem para o colectivo.

O velejador, empresário, entrepeneur e inspirador de massas, Ricardo Diniz, que nas últimas semanas tem sido alvo da atenção dos media, estará sozinho 45 dias no mar, rumo ao Brasil, com o objectivo de fazer chegar à selecção portuguesa de futebol uma mensagem de apoio para que se supere durante o Mundial.

Em conversa com a Revista 2 do PÚBLICO, há oito dias, percebeu-se que deseja promover produtos nacionais, levantar a autoestima portuguesa, combater a crítica fácil, comunicar portugalidade, seja lá o que isso for, e outras coisas louváveis.

E também percebemos que divide o mundo entre “pastores” e “ovelhas”. As ovelhas seriam pessoas que não sabem liderar as suas vidas. “São empregados, precisam de trabalhar para alguém, não fazem ideia de como se cria um negócio e de como se gere.” Os pastores, por sua vez, pagam as contas, conseguem os financiamentos e tratam dos clientes. Ele assume-se como pastor, alguém que luta pelas suas ideias e não se perde em críticas.

Ricardo Diniz é um género. Durante muitos anos criou-se a ideia que os portugueses teriam pouca iniciativa, seriam dependentes e pessimistas. E existe um fundo de verdade nisso. O problema é que se passou para o extremo oposto. Não ponho em causa as boas intenções de Diniz e de outras personalidades semelhantes.

Mas a sua atitude tem qualquer coisa de conversa mercantil, que se confunde com o misticismo ligeiro do tu-podes-ser-o-que-quiseres-e-basta-quereres. Existe um fundo de verdade nisso, claro. Mas é parcial. Ninguém consegue nada sozinho, sem equidade social. É preciso olhar para o todo.

Somos interdependentes. E é por isso que estes discursos são perigosos. Correspondem a uma ideologia. É essa ideia que sozinho se pode providenciar soluções para mudar o mundo, sem percebê-lo primeiro. É a ideia que basta sorrir para o mundo sorrir.

É uma forma de transferir e individualizar problemas, fazendo crer que se os indivíduos não conseguem cumprir os seus desígnios é por culpa própria (e não existem políticas públicas ou modelos sociais que consigam fazer nada para o reparar). Mas não se solucionam problemas colectivos individualizando soluções.

Epopeias como a de Diniz tornaram-se previsíveis. Não têm poesia. Existe todo um programa de intenções para agradar a patrocinadores e às massas, misturado com um sentido de bravura estilizado. Mas nem todas as aventuras temerárias têm de ser assim. Em 2010, Idílio Freire, do Pombal, economista, de 44 anos, partiu de Inuvik, no Canadá, para Ushuaia, na Argentina, onde chegou em Outubro de 2011, percorrendo de bicicleta 30000km e 15 países, ligando o Pólo Norte e Sul do continente americano. Acompanhei-o, às vezes, num blogue da Internet.

Idílio não empunhou nenhuma bandeira quando se fez à estrada. Provavelmente quando o fez nem ele sabia bem o que o motivava. Fez questão de não ter patrocinadores, poupando dinheiro durante anos. E quando chegou ao destino, existiram dois ou três discretos artigos na imprensa, onde mais do que debitar certezas, se percebia que a viagem o tinha levado a interrogar-se.

Nos seus relatos existia humanismo. Zero exibicionismo. No fim escreveu um pequeno texto no blogue. Dizia que a viagem não havia sido o cumprir de um sonho. Ou uma obsessão. E muito menos uma missão. Era tão somente o desejo de viver a vida com alguma intensidade, para além do quotidiano e do normativo Ocidental. Tinha querido conhecer para além da porta de casa. Tinha querido sentir. “De viver outras vidas na minha própria vida.”

Houve alturas em que se sentia transbordar e “nesses momentos gritava, cantava, assobiava, gargalhava, insultava, pedalava desabridamente até sentir os músculos arderem de esforço. Sentia-me flutuar, transcender-me, violar as regras da física e pertencer a outro universo. Estava louco, louco com o prazer de ser livre e poder ser louco; louco por existir, ter plena consciência de existir, sentir o prazer de existir e o sabor único da vida.”

Tanto quanto sei, depois da viagem, voltou ao emprego. Apenas isso. E no entanto é tanto saber porque viajamos, descobrindo um pouco de nós próprios. A vida é ela própria uma viagem. E disso, tenho quase a certeza, sabem mais e são muito mais inspiradoras ovelhas como Idílio, do que pastores como Ricardo.

VÍTOR BELANCIANO, in "Público" (04.05.2014)

O Mito e a Identidade (1961)




Etienne Decroux présente: L'usine, 1961
Collectie Theater Instituut Nederland



   Porque é que «isto» me parece tão familiar? E premonitório do que encontrarei, ou de como me encontrarei, «lá fora». O mais perto que consigo aproximar-me de uma resposta é a intuição de ser destino ou natureza do exilado e, sobretudo, do expatriado, deixar-se incorporar de estranheza e a obrigar-se a uma destruição purificadora de modo a preservar ou criar uma identidade. Contrariamente ao que tantas vezes pensamos ou gostamos de dizer (do que sentimos, nada sei) há uma espécie de consolação no facto de existirem infinitamente mais interrogações do que respostas.

domingo, 8 de março de 2015

Fosseis fósseis






O cigarro, o café, o sol a lembrar-me o que (ainda) vale a pena. Tenho pena (e que disso não passe), que as minhas inclinações, afectos, tempo e pena vão sendo absorvidos por objectos, bichos e outras presenças cada vez mais assumidamente não humanas, como se a minha pertença fosse outra como outra a família escolhida e eu satisfeito com isso.

Em suma hálitos e sons, tornaram-se sem conta, menos ainda intenção, ramos autónomos promovidos a tronco. Árvores, florestas, coisas (não fora a recentíssima confirmação científica de uma certeza, minha e antiquíssima (de sempre, na verdade) seiva e sangue que, agora quase me fazem voltar a acreditar), um imobilismo sussurrado, uma respiração salvadora.

Seja como fôr, continuo a amar-vos e a querer ver-vos mortos ou calados. Fósseis e vá não te queixes... é certo que os dias, o que com eles fizemos, como os ultrapassamos, os nossos trabalhos de Hérculos de trazer por casa, são contas de cama, intimidades burguesas, cujo único vestígio de grandeza está confinado a constar num inquérito de curiosidades cujo exercício de resposta nos obrigará a encarar o espelho, a resignadamente nos desinteressarmos de nós e internarmo-mos ou mergulharmo-nos na floresta, se preciso fôr para desaparecrmos. A palavra, essa, ficará por vossa conta.

domingo, 1 de março de 2015

Haverá ainda tempo para ler e meditar, sentir e, sem ameaças, opinar, sem que amanhã caiba em nós opinião diferente ou mesmo oposta?






Makulatur" reúne as fotografias "mais pessoais de sempre" de Paulo Nozolino. Corpos mortais, irremediavelmente condenados a ser carcaça, numa exposição sem ponto de fuga para o espectador que a Galeria Quadrado Azul inaugura hoje, em Lisboa.
Paulo Nozolino (Lisboa, 1955) não tem a menor dúvida: "Sou um fotógrafo", afirma sem hesitações a propósito da exposição "Makulatur", que inaugura hoje à noite na Galeria Quadrado Azul, em Lisboa.
Não é uma exposição qualquer, é um aperto. E é-o por diversas razões: porque a montagem coloca o espectador numa situação sem ponto de fuga, e porque o espaço exíguo e tenuemente iluminado precipita o confronto com a experiência do corpo mortal, sem redenção, irremediavelmente condenado a ser carcaça.
A melhor maneira de descrever "Makulatur" é dizer que se trata de uma câmara ardente. Só que os mortos não são outros, somos nós próprios. E a sala, o quarto, a casa que guardam estas imagens são mais uma máquina de RX do que um quarto escuro onde se revelam fotografias. Por isso Nozolino diz não haver "carne nenhuma nesta exposição": "É tudo osso."
Dizer osso é assumir a fotografia como um meio que metamorfoseia os seres individuais (corpos, rostos, objectos) em seres universais: o que se vê surgir numa fotografia já não diz respeito a uma realidade singular, mas passa a fazer parte do património comum de toda a humanidade. E o osso é o que todos temos em comum: a fotografia chega ao osso quando intensifica o sentimento de pertença.
"Makulatur" é uma exposição dura, densa e profunda. São imagens "verticais, sem espaço de manobra, directas e  duras", diz Nozolino. Não é uma dureza gratuita. É uma dureza que resulta da dor daquele que fica sem pai nem mãe, perda para a qual "se está sempre impreparado".
Memento Mori
"Makulatur" (nome técnico da impressão) é um caso extremo dessa transformação do singular em universal: o fotógrafo mostra aqui retratos dos seus pais na hora da morte. Eles estabelecem a ligação entre as diferentes imagens da exposição: todas são fotografias de um órfão que procura com a sua arma salvar a memória e impedir o esquecimento.
Falta de pudor? "Os retratos dos meus pais expostos numa galeria são uma forma de luto e um 'memento mori'. Vamos todos acabar assim. E como é que eu, que fotografei morgues e tantos cadáveres, não ia fotografar a morte dos meus pais? Seria escandaloso", diz Nozolino.
Aquelas fotografias já não documentam uma realidade, mas dão forma a um anseio. São "ícones", imagens que extrapolam o seu significado quotidiano e passam a designar uma força simbólica, magica ou fantasmática. As fotografias de "Makulatur" são uma fisionomia a essas presenças desmedidas. Esta exposição, resume o artista, dá "imagens a sentimentos".
Muito se pode dizer sobre a forma como os acontecimentos marcantes da vida de um artista podem transformar-se em tema de trabalho. Aqui interessa sublinhar a exigência ética do fotógrafo: como poderia ele, que sempre se interessou pela morte, que fotografou cenários de desolação e crianças mortas em Sarajevo, fugir da sua própria história? Sobretudo quando essa história tem os ingredientes que sempre procurou nas suas viagens.
A grande viragem desta exposição é que o longínquo onde Nozolino procurava a matéria do seu trabalho passou a designar o lugar banal e comum do quotidiano, a esquina do bairro, a casa dos pais. "Qualquer viagem me serve, mesmo aquelas em que vou ali à esquina comprar pão", diz agora. Porque a viagem tem a dimensão das descobertas feitas pelo seu olhar.
Se em anteriores trabalhos se assistia à tentativa de documentar os lugares, esta exposição é, como diz, "altamente subjectiva e pessoal": "Houve uma altura em que fiz certas fotografias. Não as enjeito, mas era incapaz de voltar as fazer. Já não sou capaz de olhar para o mundo da mesma maneira: a linha do horizonte e o céu, por exemplo, deixaram de aparecer no meu trabalho. Agora olho muito para o chão e para os cantos." Não sabe porquê: "Eu não elaboro, vou seguindo. A maneira como eu fotografo é uma reacção". E essa reacção começou por ser a de tentar salvar o que não se podia perder: "Eu venho de uma época antiga. A fotografia para mim sempre esteve ligada a uma tradição de documentar para não esquecer." Uma ligação ao gesto originário da fotografia que não se perde, mas transforma-se: já não são as cidades ou os corpos estranhos que interessa salvar da dissolução no esquecimento, mas os mais íntimos e próximos.
Regresso a casa
Paulo Nozolino fez viagens "porque os nomes dos lugares eram muito apelativos" ou por causa da História: "O Holocausto tomou-me e ia a sítios que estavam carregados dessa história." Depois deixou de "precisar ir tão longe" para encontrar aquilo de que precisa.
O regresso a casa foi motivado pela morte dos pais e fechou um ciclo: "A seguir não sei o que vai haver. No dia em que acabei a montagem, fiquei sentado a olhar para aquilo tudo e disse: já não tenho mais nada para dizer. Um sentimento inédito. Detestaria estar aos 70 anos a fazer nozolinos. Não há pior do que uma pessoa se repetir. Isto é o melhor que consigo dizer, não sei se conseguirei dizer mais."
O regresso à casa paterna emudeceu e desmantelou a segurança de quem tem uma arma na mão. Porque para Nozolino as "máquinas fotográficas são armas" e "fotografar é um tiro e tem de ser certeiro: é só um." Mas o mais importante não é fazer boas imagens (até porque com a sofisticação e o desenvolvimento das câmaras "é difícil fazer más imagens"), é "ver o que é que aquelas imagens juntas provocam."
Neste seu regresso a casa, continuou, como sempre, a fazer fotografias. Porque fazer imagens é uma prática quotidiana. Nozolino não trabalha por séries, vai fazendo "imagens de tudo" e guardando-as dentro de caixas. "Depois elas vão falando umas com as outras". É assim que nascem as exposições.
Nojo do digital
Nesse diálogo entre imagens, há umas que se esquecem para sempre e outras que se impõem: "Há milhões de fotografias feitas a cada segundo. Quais delas têm o poder de permanecer é a questão que me interessa", diz. Por isso, continua a fotografar como os seus antigos, como recusa da "sofreguidão contemporânea do andar, do ver, do olhar, que exclui o mais importante: a contemplação, que exige tempo".
Em Nozolino, a recusa do contemporâneo é quase física: "Tenho nojo do digital, aquilo não é nada. É uma imagem electrónica, sem peso ou valor. Não é possível que o digital tenha o mesmo peso do analógico. São imagens sem definição e sem profundidade. Tenho nojo da imagem vulgar. Antigamente as pessoas ainda faziam álbuns de família, hoje enfiam as imagens dentro de um computador e ficam para ali."
O fetichismo de Nozolino também é respeito pelo poder de fabricar imagens: "A fotografia sempre teve a ver com alquimia. Se pensarmos que há um feixe de luz que entra pela lente e impressiona o filme, e que depois, através de banhos, a imagem vai surgindo... Detesto a fotografia. Detesto aquilo em que se tornou. É uma coisa rotineira, um processo chato: aborrece-me andar sempre com a máquina, preferia fotografar só com os olhos. Este era o meu grande desejo: fotografar tudo o que vejo sem recorrer a um objecto."
Para Nozolino, a fotografia não é uma técnica. É o sentimento necessário a quem precisa de continuar maravilhado com a possibilidade de fazer imagens.

(Entrevista dada ao "Ipsilon"/ "Público" em 2011)