terça-feira, 17 de março de 2015

O entrepreneur e o poeta


    Andando em limpezas blogueiras topei com este rascunho que, por alguma razão já esquecida, não publiquei então (Maio de 2014). Infelizmente que o quase ano entretanto passado não o ocultaram sob a camada do pó com que as coisas sem importância ou de actualidade «desactualizada» costumam desaparecer. Por isso me decidi a colocá-lo.




Idílio Freire



Ricardo Diniz




Por que viajamos? Por escape temporário do quotidiano. Para nos escondermos de nós próprios e dos outros, ou para nos reencontramos. Há quem parta apenas para voltar. Para na ausência se lembrar do que deixou. Outros viajam para aprender, trazendo conhecimento na bagagem. Também há quem só traga compras. Para esses o mundo é um imenso centro comercial.

O estatuto social pode ser outra força motriz, típica de quem viaja para se exibir no regresso. Cada vez mais, hoje, existe também quem o faça anunciando aos sete ventos o seu propósito, fazendo da viagem um acontecimento, uma performance de superação, já não apenas para si, mas com mensagem para o colectivo.

O velejador, empresário, entrepeneur e inspirador de massas, Ricardo Diniz, que nas últimas semanas tem sido alvo da atenção dos media, estará sozinho 45 dias no mar, rumo ao Brasil, com o objectivo de fazer chegar à selecção portuguesa de futebol uma mensagem de apoio para que se supere durante o Mundial.

Em conversa com a Revista 2 do PÚBLICO, há oito dias, percebeu-se que deseja promover produtos nacionais, levantar a autoestima portuguesa, combater a crítica fácil, comunicar portugalidade, seja lá o que isso for, e outras coisas louváveis.

E também percebemos que divide o mundo entre “pastores” e “ovelhas”. As ovelhas seriam pessoas que não sabem liderar as suas vidas. “São empregados, precisam de trabalhar para alguém, não fazem ideia de como se cria um negócio e de como se gere.” Os pastores, por sua vez, pagam as contas, conseguem os financiamentos e tratam dos clientes. Ele assume-se como pastor, alguém que luta pelas suas ideias e não se perde em críticas.

Ricardo Diniz é um género. Durante muitos anos criou-se a ideia que os portugueses teriam pouca iniciativa, seriam dependentes e pessimistas. E existe um fundo de verdade nisso. O problema é que se passou para o extremo oposto. Não ponho em causa as boas intenções de Diniz e de outras personalidades semelhantes.

Mas a sua atitude tem qualquer coisa de conversa mercantil, que se confunde com o misticismo ligeiro do tu-podes-ser-o-que-quiseres-e-basta-quereres. Existe um fundo de verdade nisso, claro. Mas é parcial. Ninguém consegue nada sozinho, sem equidade social. É preciso olhar para o todo.

Somos interdependentes. E é por isso que estes discursos são perigosos. Correspondem a uma ideologia. É essa ideia que sozinho se pode providenciar soluções para mudar o mundo, sem percebê-lo primeiro. É a ideia que basta sorrir para o mundo sorrir.

É uma forma de transferir e individualizar problemas, fazendo crer que se os indivíduos não conseguem cumprir os seus desígnios é por culpa própria (e não existem políticas públicas ou modelos sociais que consigam fazer nada para o reparar). Mas não se solucionam problemas colectivos individualizando soluções.

Epopeias como a de Diniz tornaram-se previsíveis. Não têm poesia. Existe todo um programa de intenções para agradar a patrocinadores e às massas, misturado com um sentido de bravura estilizado. Mas nem todas as aventuras temerárias têm de ser assim. Em 2010, Idílio Freire, do Pombal, economista, de 44 anos, partiu de Inuvik, no Canadá, para Ushuaia, na Argentina, onde chegou em Outubro de 2011, percorrendo de bicicleta 30000km e 15 países, ligando o Pólo Norte e Sul do continente americano. Acompanhei-o, às vezes, num blogue da Internet.

Idílio não empunhou nenhuma bandeira quando se fez à estrada. Provavelmente quando o fez nem ele sabia bem o que o motivava. Fez questão de não ter patrocinadores, poupando dinheiro durante anos. E quando chegou ao destino, existiram dois ou três discretos artigos na imprensa, onde mais do que debitar certezas, se percebia que a viagem o tinha levado a interrogar-se.

Nos seus relatos existia humanismo. Zero exibicionismo. No fim escreveu um pequeno texto no blogue. Dizia que a viagem não havia sido o cumprir de um sonho. Ou uma obsessão. E muito menos uma missão. Era tão somente o desejo de viver a vida com alguma intensidade, para além do quotidiano e do normativo Ocidental. Tinha querido conhecer para além da porta de casa. Tinha querido sentir. “De viver outras vidas na minha própria vida.”

Houve alturas em que se sentia transbordar e “nesses momentos gritava, cantava, assobiava, gargalhava, insultava, pedalava desabridamente até sentir os músculos arderem de esforço. Sentia-me flutuar, transcender-me, violar as regras da física e pertencer a outro universo. Estava louco, louco com o prazer de ser livre e poder ser louco; louco por existir, ter plena consciência de existir, sentir o prazer de existir e o sabor único da vida.”

Tanto quanto sei, depois da viagem, voltou ao emprego. Apenas isso. E no entanto é tanto saber porque viajamos, descobrindo um pouco de nós próprios. A vida é ela própria uma viagem. E disso, tenho quase a certeza, sabem mais e são muito mais inspiradoras ovelhas como Idílio, do que pastores como Ricardo.

VÍTOR BELANCIANO, in "Público" (04.05.2014)