Makulatur" reúne as fotografias "mais pessoais de sempre" de Paulo Nozolino. Corpos mortais, irremediavelmente condenados a ser carcaça, numa exposição sem ponto de fuga para o espectador que a Galeria Quadrado Azul inaugura hoje, em Lisboa.
Paulo Nozolino (Lisboa, 1955) não tem a menor dúvida: "Sou um fotógrafo", afirma sem hesitações a propósito da exposição "Makulatur", que inaugura hoje à noite na Galeria Quadrado Azul, em Lisboa.
Não é uma exposição qualquer, é um aperto. E é-o por diversas razões: porque a montagem coloca o espectador numa situação sem ponto de fuga, e porque o espaço exíguo e tenuemente iluminado precipita o confronto com a experiência do corpo mortal, sem redenção, irremediavelmente condenado a ser carcaça.
A melhor maneira de descrever "Makulatur" é dizer que se trata de uma câmara ardente. Só que os mortos não são outros, somos nós próprios. E a sala, o quarto, a casa que guardam estas imagens são mais uma máquina de RX do que um quarto escuro onde se revelam fotografias. Por isso Nozolino diz não haver "carne nenhuma nesta exposição": "É tudo osso."
Dizer osso é assumir a fotografia como um meio que metamorfoseia os seres individuais (corpos, rostos, objectos) em seres universais: o que se vê surgir numa fotografia já não diz respeito a uma realidade singular, mas passa a fazer parte do património comum de toda a humanidade. E o osso é o que todos temos em comum: a fotografia chega ao osso quando intensifica o sentimento de pertença.
"Makulatur" é uma exposição dura, densa e profunda. São imagens "verticais, sem espaço de manobra, directas e duras", diz Nozolino. Não é uma dureza gratuita. É uma dureza que resulta da dor daquele que fica sem pai nem mãe, perda para a qual "se está sempre impreparado".
Memento Mori
"Makulatur" (nome técnico da impressão) é um caso extremo dessa transformação do singular em universal: o fotógrafo mostra aqui retratos dos seus pais na hora da morte. Eles estabelecem a ligação entre as diferentes imagens da exposição: todas são fotografias de um órfão que procura com a sua arma salvar a memória e impedir o esquecimento.
Falta de pudor? "Os retratos dos meus pais expostos numa galeria são uma forma de luto e um 'memento mori'. Vamos todos acabar assim. E como é que eu, que fotografei morgues e tantos cadáveres, não ia fotografar a morte dos meus pais? Seria escandaloso", diz Nozolino.
Aquelas fotografias já não documentam uma realidade, mas dão forma a um anseio. São "ícones", imagens que extrapolam o seu significado quotidiano e passam a designar uma força simbólica, magica ou fantasmática. As fotografias de "Makulatur" são uma fisionomia a essas presenças desmedidas. Esta exposição, resume o artista, dá "imagens a sentimentos".
Muito se pode dizer sobre a forma como os acontecimentos marcantes da vida de um artista podem transformar-se em tema de trabalho. Aqui interessa sublinhar a exigência ética do fotógrafo: como poderia ele, que sempre se interessou pela morte, que fotografou cenários de desolação e crianças mortas em Sarajevo, fugir da sua própria história? Sobretudo quando essa história tem os ingredientes que sempre procurou nas suas viagens.
A grande viragem desta exposição é que o longínquo onde Nozolino procurava a matéria do seu trabalho passou a designar o lugar banal e comum do quotidiano, a esquina do bairro, a casa dos pais. "Qualquer viagem me serve, mesmo aquelas em que vou ali à esquina comprar pão", diz agora. Porque a viagem tem a dimensão das descobertas feitas pelo seu olhar.
Se em anteriores trabalhos se assistia à tentativa de documentar os lugares, esta exposição é, como diz, "altamente subjectiva e pessoal": "Houve uma altura em que fiz certas fotografias. Não as enjeito, mas era incapaz de voltar as fazer. Já não sou capaz de olhar para o mundo da mesma maneira: a linha do horizonte e o céu, por exemplo, deixaram de aparecer no meu trabalho. Agora olho muito para o chão e para os cantos." Não sabe porquê: "Eu não elaboro, vou seguindo. A maneira como eu fotografo é uma reacção". E essa reacção começou por ser a de tentar salvar o que não se podia perder: "Eu venho de uma época antiga. A fotografia para mim sempre esteve ligada a uma tradição de documentar para não esquecer." Uma ligação ao gesto originário da fotografia que não se perde, mas transforma-se: já não são as cidades ou os corpos estranhos que interessa salvar da dissolução no esquecimento, mas os mais íntimos e próximos.
Regresso a casa
Paulo Nozolino fez viagens "porque os nomes dos lugares eram muito apelativos" ou por causa da História: "O Holocausto tomou-me e ia a sítios que estavam carregados dessa história." Depois deixou de "precisar ir tão longe" para encontrar aquilo de que precisa.
O regresso a casa foi motivado pela morte dos pais e fechou um ciclo: "A seguir não sei o que vai haver. No dia em que acabei a montagem, fiquei sentado a olhar para aquilo tudo e disse: já não tenho mais nada para dizer. Um sentimento inédito. Detestaria estar aos 70 anos a fazer nozolinos. Não há pior do que uma pessoa se repetir. Isto é o melhor que consigo dizer, não sei se conseguirei dizer mais."
O regresso à casa paterna emudeceu e desmantelou a segurança de quem tem uma arma na mão. Porque para Nozolino as "máquinas fotográficas são armas" e "fotografar é um tiro e tem de ser certeiro: é só um." Mas o mais importante não é fazer boas imagens (até porque com a sofisticação e o desenvolvimento das câmaras "é difícil fazer más imagens"), é "ver o que é que aquelas imagens juntas provocam."
Neste seu regresso a casa, continuou, como sempre, a fazer fotografias. Porque fazer imagens é uma prática quotidiana. Nozolino não trabalha por séries, vai fazendo "imagens de tudo" e guardando-as dentro de caixas. "Depois elas vão falando umas com as outras". É assim que nascem as exposições.
Nojo do digital
Nesse diálogo entre imagens, há umas que se esquecem para sempre e outras que se impõem: "Há milhões de fotografias feitas a cada segundo. Quais delas têm o poder de permanecer é a questão que me interessa", diz. Por isso, continua a fotografar como os seus antigos, como recusa da "sofreguidão contemporânea do andar, do ver, do olhar, que exclui o mais importante: a contemplação, que exige tempo".
Em Nozolino, a recusa do contemporâneo é quase física: "Tenho nojo do digital, aquilo não é nada. É uma imagem electrónica, sem peso ou valor. Não é possível que o digital tenha o mesmo peso do analógico. São imagens sem definição e sem profundidade. Tenho nojo da imagem vulgar. Antigamente as pessoas ainda faziam álbuns de família, hoje enfiam as imagens dentro de um computador e ficam para ali."
O fetichismo de Nozolino também é respeito pelo poder de fabricar imagens: "A fotografia sempre teve a ver com alquimia. Se pensarmos que há um feixe de luz que entra pela lente e impressiona o filme, e que depois, através de banhos, a imagem vai surgindo... Detesto a fotografia. Detesto aquilo em que se tornou. É uma coisa rotineira, um processo chato: aborrece-me andar sempre com a máquina, preferia fotografar só com os olhos. Este era o meu grande desejo: fotografar tudo o que vejo sem recorrer a um objecto."
Para Nozolino, a fotografia não é uma técnica. É o sentimento necessário a quem precisa de continuar maravilhado com a possibilidade de fazer imagens.