domingo, 1 de março de 2015

Haverá ainda tempo para ler e meditar, sentir e, sem ameaças, opinar, sem que amanhã caiba em nós opinião diferente ou mesmo oposta?






Makulatur" reúne as fotografias "mais pessoais de sempre" de Paulo Nozolino. Corpos mortais, irremediavelmente condenados a ser carcaça, numa exposição sem ponto de fuga para o espectador que a Galeria Quadrado Azul inaugura hoje, em Lisboa.
Paulo Nozolino (Lisboa, 1955) não tem a menor dúvida: "Sou um fotógrafo", afirma sem hesitações a propósito da exposição "Makulatur", que inaugura hoje à noite na Galeria Quadrado Azul, em Lisboa.
Não é uma exposição qualquer, é um aperto. E é-o por diversas razões: porque a montagem coloca o espectador numa situação sem ponto de fuga, e porque o espaço exíguo e tenuemente iluminado precipita o confronto com a experiência do corpo mortal, sem redenção, irremediavelmente condenado a ser carcaça.
A melhor maneira de descrever "Makulatur" é dizer que se trata de uma câmara ardente. Só que os mortos não são outros, somos nós próprios. E a sala, o quarto, a casa que guardam estas imagens são mais uma máquina de RX do que um quarto escuro onde se revelam fotografias. Por isso Nozolino diz não haver "carne nenhuma nesta exposição": "É tudo osso."
Dizer osso é assumir a fotografia como um meio que metamorfoseia os seres individuais (corpos, rostos, objectos) em seres universais: o que se vê surgir numa fotografia já não diz respeito a uma realidade singular, mas passa a fazer parte do património comum de toda a humanidade. E o osso é o que todos temos em comum: a fotografia chega ao osso quando intensifica o sentimento de pertença.
"Makulatur" é uma exposição dura, densa e profunda. São imagens "verticais, sem espaço de manobra, directas e  duras", diz Nozolino. Não é uma dureza gratuita. É uma dureza que resulta da dor daquele que fica sem pai nem mãe, perda para a qual "se está sempre impreparado".
Memento Mori
"Makulatur" (nome técnico da impressão) é um caso extremo dessa transformação do singular em universal: o fotógrafo mostra aqui retratos dos seus pais na hora da morte. Eles estabelecem a ligação entre as diferentes imagens da exposição: todas são fotografias de um órfão que procura com a sua arma salvar a memória e impedir o esquecimento.
Falta de pudor? "Os retratos dos meus pais expostos numa galeria são uma forma de luto e um 'memento mori'. Vamos todos acabar assim. E como é que eu, que fotografei morgues e tantos cadáveres, não ia fotografar a morte dos meus pais? Seria escandaloso", diz Nozolino.
Aquelas fotografias já não documentam uma realidade, mas dão forma a um anseio. São "ícones", imagens que extrapolam o seu significado quotidiano e passam a designar uma força simbólica, magica ou fantasmática. As fotografias de "Makulatur" são uma fisionomia a essas presenças desmedidas. Esta exposição, resume o artista, dá "imagens a sentimentos".
Muito se pode dizer sobre a forma como os acontecimentos marcantes da vida de um artista podem transformar-se em tema de trabalho. Aqui interessa sublinhar a exigência ética do fotógrafo: como poderia ele, que sempre se interessou pela morte, que fotografou cenários de desolação e crianças mortas em Sarajevo, fugir da sua própria história? Sobretudo quando essa história tem os ingredientes que sempre procurou nas suas viagens.
A grande viragem desta exposição é que o longínquo onde Nozolino procurava a matéria do seu trabalho passou a designar o lugar banal e comum do quotidiano, a esquina do bairro, a casa dos pais. "Qualquer viagem me serve, mesmo aquelas em que vou ali à esquina comprar pão", diz agora. Porque a viagem tem a dimensão das descobertas feitas pelo seu olhar.
Se em anteriores trabalhos se assistia à tentativa de documentar os lugares, esta exposição é, como diz, "altamente subjectiva e pessoal": "Houve uma altura em que fiz certas fotografias. Não as enjeito, mas era incapaz de voltar as fazer. Já não sou capaz de olhar para o mundo da mesma maneira: a linha do horizonte e o céu, por exemplo, deixaram de aparecer no meu trabalho. Agora olho muito para o chão e para os cantos." Não sabe porquê: "Eu não elaboro, vou seguindo. A maneira como eu fotografo é uma reacção". E essa reacção começou por ser a de tentar salvar o que não se podia perder: "Eu venho de uma época antiga. A fotografia para mim sempre esteve ligada a uma tradição de documentar para não esquecer." Uma ligação ao gesto originário da fotografia que não se perde, mas transforma-se: já não são as cidades ou os corpos estranhos que interessa salvar da dissolução no esquecimento, mas os mais íntimos e próximos.
Regresso a casa
Paulo Nozolino fez viagens "porque os nomes dos lugares eram muito apelativos" ou por causa da História: "O Holocausto tomou-me e ia a sítios que estavam carregados dessa história." Depois deixou de "precisar ir tão longe" para encontrar aquilo de que precisa.
O regresso a casa foi motivado pela morte dos pais e fechou um ciclo: "A seguir não sei o que vai haver. No dia em que acabei a montagem, fiquei sentado a olhar para aquilo tudo e disse: já não tenho mais nada para dizer. Um sentimento inédito. Detestaria estar aos 70 anos a fazer nozolinos. Não há pior do que uma pessoa se repetir. Isto é o melhor que consigo dizer, não sei se conseguirei dizer mais."
O regresso à casa paterna emudeceu e desmantelou a segurança de quem tem uma arma na mão. Porque para Nozolino as "máquinas fotográficas são armas" e "fotografar é um tiro e tem de ser certeiro: é só um." Mas o mais importante não é fazer boas imagens (até porque com a sofisticação e o desenvolvimento das câmaras "é difícil fazer más imagens"), é "ver o que é que aquelas imagens juntas provocam."
Neste seu regresso a casa, continuou, como sempre, a fazer fotografias. Porque fazer imagens é uma prática quotidiana. Nozolino não trabalha por séries, vai fazendo "imagens de tudo" e guardando-as dentro de caixas. "Depois elas vão falando umas com as outras". É assim que nascem as exposições.
Nojo do digital
Nesse diálogo entre imagens, há umas que se esquecem para sempre e outras que se impõem: "Há milhões de fotografias feitas a cada segundo. Quais delas têm o poder de permanecer é a questão que me interessa", diz. Por isso, continua a fotografar como os seus antigos, como recusa da "sofreguidão contemporânea do andar, do ver, do olhar, que exclui o mais importante: a contemplação, que exige tempo".
Em Nozolino, a recusa do contemporâneo é quase física: "Tenho nojo do digital, aquilo não é nada. É uma imagem electrónica, sem peso ou valor. Não é possível que o digital tenha o mesmo peso do analógico. São imagens sem definição e sem profundidade. Tenho nojo da imagem vulgar. Antigamente as pessoas ainda faziam álbuns de família, hoje enfiam as imagens dentro de um computador e ficam para ali."
O fetichismo de Nozolino também é respeito pelo poder de fabricar imagens: "A fotografia sempre teve a ver com alquimia. Se pensarmos que há um feixe de luz que entra pela lente e impressiona o filme, e que depois, através de banhos, a imagem vai surgindo... Detesto a fotografia. Detesto aquilo em que se tornou. É uma coisa rotineira, um processo chato: aborrece-me andar sempre com a máquina, preferia fotografar só com os olhos. Este era o meu grande desejo: fotografar tudo o que vejo sem recorrer a um objecto."
Para Nozolino, a fotografia não é uma técnica. É o sentimento necessário a quem precisa de continuar maravilhado com a possibilidade de fazer imagens.

(Entrevista dada ao "Ipsilon"/ "Público" em 2011)