terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Chavela Crucis



Tómate esta botella conmigo
en el último trago nos vamos
quiero ver a qué sabe tu olvido
sin poner en mis ojos tus manos
esta noche no voy a rogarte
esta noche te vas que de veras
que difícil trata de olvidarte
y que sienta que ya no me quieras
Nada me han enseñado los años
siempre caigo en los mismos errores
otra vez a brindar con extraños
y a llorar por los mismos dolores
Tómate esta botella conmigo
en el último trago me dejas
esperamos que no haya testigos
por si acaso te diera vergüenza
si algún día sin querer tropezamos
no te agaches ni me hables de frente
simplemente la mano nos damos
y después que murmure la gente
Nada me han enseñado...




EL SALSERO

I

Os homens são assim. Bebem demais,
cantam, esconjunram a morte
chamando-a para mais perto - e ela vem.
É uma ciência nocturna, a dos
homens, enquanto copos e garrafas
martelam sobre o balcão
os compassos de uma música sem saída.

É tão triste às vezes saber
que «à sombra do milho verde
namorei uma cachopa» - ou
pedir ao rosto de ninguém
que nos beije muito, como se fosse 
esta noite a última vez.
Tão triste, numa noite realmente
última, lembrar  outra vez os amigos
que hoje aqui não estão por terem
bebido mais depressa o mesmo copo
letal que nos afasta da morte.

Amores, desamores, injúrias
e palavras vizinhas dos punhais.
Coisas que os anos foram sepultando,
quase com doçura ou escárnio.
porque os homens quando bebem,
conhecem imensamente a loucura,
sentam nos ombros mais velhos
o peso insidioso da melancolia.
E não é fácil de ver, tanta dor.

Isso mesmo que certas canções
ou a névoa do haxixe nos fazem esquecer
por breves instantes uma vida inteira.
Isso mesmo, ainda, que na derrota
de um sorriso se confunde com o
sudário dos dias. Porque dentro destas
quatro paredes, sabíamos bem, era
proibido amanhecer. Só muito mais tarde,
já sem alma nem dinheiro, os corpos
voltariam a rastejar para a 
maldição da luz. Com uma canção
mais fria a escurecer-lhes os lábios.



II

Empalidece agora o sorriso do gusano
na parede, ferem mais as palavras
sem mesura de Chavela Vargas
e a certeza subitamente real deste último
trago entre os últimos da festa.
As garrafas de várias cores não voltarão
a derramar o seu cálido perfume
e há, talvez, um mapa de afectos que
soçobra, um poema que ninguém escreveu.

mas a perdição continuará, noutros 
sítios, em casa de gente que morre
e entristece de tanto viver. Os dolorosos
amigos. Existirá sempre um vinho forte
a alimentar o epicentro do pânico,
aí onde apenas o vazio tem mãos
capazes de nos amparar na queda.

O que não lemos, o que não amámos,
os países que desconhecemos - tudo isso
ficará dentro destas paredes condenadas
à destruição e às prepotentes razões do lucro.
Perder - eis a nossa vocação, a única. Com um
relampâgo de sombra nos olhos apagados.


III

O teu amigo, porém, regressa - abre
pela última vez a porta larga do inferno
e anuncia para a escuridão dos rostos
que «já é dia». Finge também ele sorrir,
perder de pé. Porque há evidências inaceitáveis,
manhãs de metal que nos surpreendem vivos.

Só no táxi, abraçamos a certeza do fim, agora
mais palpável, e o dia demolido que nos espera.
Há horas assim - de que a própria morte
se apiedaria, se tivesse tempo.
Uma canção que regressa só para nos dizer
que a perdemos, que é tão tarde o corpo.


Manuel de Freitas, in "A Última Porta" (Selecção e posfácio de João Miguel Silva), Assírio & Alvim, Lx. 2010