As
biografias
António
Lobo Antunes
Gosto muito
de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Contam
factos, acumulam testemunhos, relatam acontecimentos mas é tudo por
fora, e saio delas sem conhecer um pito da pessoa a que o livro se
refere. Sem conhecer um pito do que a pessoa é. Fico ao par de uma
casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da
intimidade nos está vedado. Queria uma vida e dão-me historinhas
porém, como gosto de historinhas, divertem-me. Não se consegue ter
acesso ao interior de um homem ou de uma mulher através de episódios
inevitavelmente exteriores. O que eles sentiram permanece inviolado.
Sabemos dos seixos ou das algas na praia, não sabemos do mar.
Extractos de cartas, de confissões, de confidências e a certeza que
outras coisas por baixo, que as coisas importantes por baixo,
intactas. Scott Fitzgerald sustentava não se poder contar a vida de
um escritor porque ele é muita gente. Para mim não é isso, é a
incapacidade de aceder ao fundo. Ficamos na espuma ou, na melhor das
hipóteses, um bocadinho abaixo da espuma. Mais nada. E, no entanto,
a espuma é interessante, permite-nos fantasiar, inventar, obter uma
personagem que nos pertence a nós, não se pertence a si mesma. Por
exemplo, leio uma biografia de John Cheever e não fico a saber do
John Cheever, fico a saber do John Cheever do biógrafo. Uma espécie
de romance, no sentido tradicional da palavra, no qual John Cheever é
a personagem chave. Então, uma biografia é um romance em que se
imagina que a criatura que dá o nome ao livro é verdadeira. Como
era, na realidade, Balzac? Nem através da sua correspondência o
conhecemos. Mesmo quando é o caso de um parente muito próximo a
compor o livro o desconhecimento permanece. E se, por hipótese, eu
publicasse a biografia de António Lobo Antunes não publicava a
biografia de António Lobo Antunes nenhum, publicava a minha noção
dele, dado que aquilo que somos, para nós mesmos, não passa da
fantasia do que somos. A vida é um jogo de espectros, ainda que de
espectros sinceros. E o que é a sinceridade? Mentir melhor,
genuinamente convencidos que não mentimos? Nada é o que parece,
afirmava Cortazar e, inevitavelmente, não somos o que temos a
certeza de sermos. Se uma pessoa me declara, acerca de outra
- Conheço-o
de ginjeira
calo-me com a
certeza de que a não conhece de ginjeira nenhuma. Conhecemos apenas
o que supomos e que, de uma forma ou outra, é uma extensão de nós
mesmos. Então, para mim, ler biografias é igual a ler aventuras de
Sandokan, soberano da Malásia. (Entre parêntesis, gosto de Sandokan
soberano da Malásia.) E as vidas dos outros são os acontecimentos
imaginários que me dão prazer. Eu não escrevo romances: são
artefactos que gosto de ler mas não gostaria de ter escrito.
Simenon, por exemplo: dá-me prazer ler, não me dava prazer nenhum
escrever aquilo. Prazer é uma palavra idiota, porque não a associo
ao acto de escrever. O que me interessa é experimentar, penosamente,
alcançar com o dedo as areias do fundo, quero lá saber de
personagens e enredos: servem-me, quando muito, de isco, para atrair
o leitor e, sobretudo, para me atrair a mim mesmo, à verdade dos
símbolos. Toda a verdade é simbólica e, daí, a impossibilidade de
qualquer biografia, necessariamente descritiva. O problema é que
existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias
satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral
admiro, que me encanta. O lado quotidiano, pequenino, até mesquinho,
das pessoas, sempre me atraiu, da mesma forma que sou capaz de passar
horas a observar os códigos dos insectos. E a nossa vida,
deixemo-nos de tretas, é feita de acontecimentos minúsculos, cujo
carácter microscópico me encanta. Os breves surtos de grandeza da
nossa existência são tão breves! Merecemos morrer porque a nossa
dimensão é quase nula, desaparecermos, como as minhocas, no
interior da terra. Não há grandes homens: há actos que, às vezes,
são grandes e, acabados esses actos, regressamos de imediato, ao
nosso curtíssimo tamanho, bichos da terra tão pequenos, ó irmão
Luís. Há um livro de Gertrude Stein, chamado Autobiografia de toda
a gente. O título é óptimo, a obra não vale nada mas, em certo
sentido, o que as pessoas que escrevem tentam conseguir é essa
Autobiografia de toda a gente: há mil maneiras de o tentar, ignoro
se há alguma de o conseguir. Estava a acabar esta frase e veio-me à
cabeça Balzac moribundo, a pedir socorro aos vários médicos que
criou na Comédia Humana: o criador implorando ajuda à criatura faz
todo o nexo para mim, nos livros que deixamos sucede sempre isso.
Pergunto-me se a única biografia possível de um artista não será
a da sua obra, página a página, capítulo a capítulo. E a maneira
de conhecer o biografado estudar-lhe o trabalho porque, ao fim e ao
cabo, é o único sítio em que a pessoa está. Claro que isto não
me tira o prazer de ler biografias mesmo sabendo que não biografam
nada. Acho que as leio por isso, por não biografarem nada, a não
ser uma pessoa inventada a quem atribuímos um nome real, pormenores
reais, episódios reais, quando a vida nada tem a ver com essa
realidade. Tudo é excepcional e se passa a outro nível. E, depois,
não podemos acreditar no que o objecto do nosso estudo diz. Quando
Fields afirma "as mulheres são como os elefantes. Gosto de
olhar para elas mas não gostava de ter uma em casa" que
biógrafo o toma a sério? Quando Kraus anuncia "não gosto de
me meter nos meus assuntos privados" quem o acredita? Porém
estes, contarelos divertem-me e a ideia de Tchecov a morrer bebendo
champanhe enternece-me. Só que as vidas deles foram outra coisa. Uma
biografia autêntica tem que ter as páginas em branco. Muitas
páginas em branco. Todas as páginas em branco. Depois a gente lê o
branco muito devagarinho e com muito cuidado e tudo quanto lá está,
percebemos então, é verdade.