terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Biografias - António Lobo Antunes

As biografias
António Lobo Antunes


Gosto muito de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Contam factos, acumulam testemunhos, relatam acontecimentos mas é tudo por fora, e saio delas sem conhecer um pito da pessoa a que o livro se refere. Sem conhecer um pito do que a pessoa é. Fico ao par de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da intimidade nos está vedado. Queria uma vida e dão-me historinhas porém, como gosto de historinhas, divertem-me. Não se consegue ter acesso ao interior de um homem ou de uma mulher através de episódios inevitavelmente exteriores. O que eles sentiram permanece inviolado. Sabemos dos seixos ou das algas na praia, não sabemos do mar. Extractos de cartas, de confissões, de confidências e a certeza que outras coisas por baixo, que as coisas importantes por baixo, intactas. Scott Fitzgerald sustentava não se poder contar a vida de um escritor porque ele é muita gente. Para mim não é isso, é a incapacidade de aceder ao fundo. Ficamos na espuma ou, na melhor das hipóteses, um bocadinho abaixo da espuma. Mais nada. E, no entanto, a espuma é interessante, permite-nos fantasiar, inventar, obter uma personagem que nos pertence a nós, não se pertence a si mesma. Por exemplo, leio uma biografia de John Cheever e não fico a saber do John Cheever, fico a saber do John Cheever do biógrafo. Uma espécie de romance, no sentido tradicional da palavra, no qual John Cheever é a personagem chave. Então, uma biografia é um romance em que se imagina que a criatura que dá o nome ao livro é verdadeira. Como era, na realidade, Balzac? Nem através da sua correspondência o conhecemos. Mesmo quando é o caso de um parente muito próximo a compor o livro o desconhecimento permanece. E se, por hipótese, eu publicasse a biografia de António Lobo Antunes não publicava a biografia de António Lobo Antunes nenhum, publicava a minha noção dele, dado que aquilo que somos, para nós mesmos, não passa da fantasia do que somos. A vida é um jogo de espectros, ainda que de espectros sinceros. E o que é a sinceridade? Mentir melhor, genuinamente convencidos que não mentimos? Nada é o que parece, afirmava Cortazar e, inevitavelmente, não somos o que temos a certeza de sermos. Se uma pessoa me declara, acerca de outra
- Conheço-o de ginjeira
calo-me com a certeza de que a não conhece de ginjeira nenhuma. Conhecemos apenas o que supomos e que, de uma forma ou outra, é uma extensão de nós mesmos. Então, para mim, ler biografias é igual a ler aventuras de Sandokan, soberano da Malásia. (Entre parêntesis, gosto de Sandokan soberano da Malásia.) E as vidas dos outros são os acontecimentos imaginários que me dão prazer. Eu não escrevo romances: são artefactos que gosto de ler mas não gostaria de ter escrito. Simenon, por exemplo: dá-me prazer ler, não me dava prazer nenhum escrever aquilo. Prazer é uma palavra idiota, porque não a associo ao acto de escrever. O que me interessa é experimentar, penosamente, alcançar com o dedo as areias do fundo, quero lá saber de personagens e enredos: servem-me, quando muito, de isco, para atrair o leitor e, sobretudo, para me atrair a mim mesmo, à verdade dos símbolos. Toda a verdade é simbólica e, daí, a impossibilidade de qualquer biografia, necessariamente descritiva. O problema é que existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral admiro, que me encanta. O lado quotidiano, pequenino, até mesquinho, das pessoas, sempre me atraiu, da mesma forma que sou capaz de passar horas a observar os códigos dos insectos. E a nossa vida, deixemo-nos de tretas, é feita de acontecimentos minúsculos, cujo carácter microscópico me encanta. Os breves surtos de grandeza da nossa existência são tão breves! Merecemos morrer porque a nossa dimensão é quase nula, desaparecermos, como as minhocas, no interior da terra. Não há grandes homens: há actos que, às vezes, são grandes e, acabados esses actos, regressamos de imediato, ao nosso curtíssimo tamanho, bichos da terra tão pequenos, ó irmão Luís. Há um livro de Gertrude Stein, chamado Autobiografia de toda a gente. O título é óptimo, a obra não vale nada mas, em certo sentido, o que as pessoas que escrevem tentam conseguir é essa Autobiografia de toda a gente: há mil maneiras de o tentar, ignoro se há alguma de o conseguir. Estava a acabar esta frase e veio-me à cabeça Balzac moribundo, a pedir socorro aos vários médicos que criou na Comédia Humana: o criador implorando ajuda à criatura faz todo o nexo para mim, nos livros que deixamos sucede sempre isso. Pergunto-me se a única biografia possível de um artista não será a da sua obra, página a página, capítulo a capítulo. E a maneira de conhecer o biografado estudar-lhe o trabalho porque, ao fim e ao cabo, é o único sítio em que a pessoa está. Claro que isto não me tira o prazer de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Acho que as leio por isso, por não biografarem nada, a não ser uma pessoa inventada a quem atribuímos um nome real, pormenores reais, episódios reais, quando a vida nada tem a ver com essa realidade. Tudo é excepcional e se passa a outro nível. E, depois, não podemos acreditar no que o objecto do nosso estudo diz. Quando Fields afirma "as mulheres são como os elefantes. Gosto de olhar para elas mas não gostava de ter uma em casa" que biógrafo o toma a sério? Quando Kraus anuncia "não gosto de me meter nos meus assuntos privados" quem o acredita? Porém estes, contarelos divertem-me e a ideia de Tchecov a morrer bebendo champanhe enternece-me. Só que as vidas deles foram outra coisa. Uma biografia autêntica tem que ter as páginas em branco. Muitas páginas em branco. Todas as páginas em branco. Depois a gente lê o branco muito devagarinho e com muito cuidado e tudo quanto lá está, percebemos então, é verdade.

As biografias

Existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral admiro, que me encanta.

António Lobo Antunes


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Existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral admiro, que me encanta.

António Lobo Antunes


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