sábado, 26 de maio de 2012

Sereia disse o homem no barco. E o mar foi só silêncio
Sereia pensou e foi nada ou mansa demência.
O que são ondas, o que são fonduras, onde vive o fim se casa tem
Porque se enche assim o meu peito de praias que não vejo?

Sob o sol, e sobre as ondas apenas navegam miragens
Fomes, sedes, securas líquidas
Sereia do silêncio deixa-me ser e serei...
Apenas ser não pensante ou náufrago embarcado

Sereia, por nós rasgo mapas, abandono rumos, arreio velas
Desinteresso-me de ventos e evito portos
Quase morto, recém nascido olho os azuis olhos do mar
Sereia, anémona, raia, pelágico ou mãe nas funduras...

Não me leves já, não me abraces ainda, nem embales
Frio já tenho, frio já estou sereia
Sereno como um recém parido ainda por inventar.
Branco como a neve e como a espuma, perdidamente branco como esta folha.

domingo, 13 de maio de 2012

"the saddest heart in the post-war supermarket"




They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man,
It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
And don’t have any kids yourself.

Philip Larkin

Exercício Musical


Cada um mui agasalhado na sua vida
cada qual deveras encasacado no seu retrato
e todos definitivamente assertoados nas suas certezas.

            Poderia começar assim uma reflexão, um vou-ali-e-já-venho, uma recriminação leve ou
       sibilina. Em todos os casos, desabafo ligeiro e pouco mais do que declaração de voto. Mas, não
       é disso que se trata... O medo tem muitas caras e nós cara só uma. Assim como o mar e as ondas talvez
       quando “sou” “somos”. Portanto ou caímos todos ou não tomba ninguém


Sonhei com uma casa e soube que apenas ali poderia morar
Sonhei com uma mulher e de saber soube que a podia amar
Como uma praia, um lago ou uma lembrança para, enfim, descansar.

          Quando se contam sonhos mostram-se miudezas, intimidades, fraquezas. essa atracção pelo abismo,
      digamos que suicidária, poderá estar à altura ou fazer as vezes de necessidade. Aos mortos resta a voz, por
      isso se socorrem da palavra. E nós, que nos julgamos vivos?


Quanto mais te vestes mais nú ficas, esquecido das inclemências
do tempo, e ao mesmo tempo, definitivamente, prisioneiro do tempo.
Frio é o que suportarmos, tudo o resto é a eternidade dos adiados.

         Grossas grades, grandes silêncios. Distrações e adiamentos. Por temor ao peso, baixamos o olhar até
     cegar, deixamos de rir, evitamos chorar. Liquefazemo-nos numa saudade que nos aterroriza, apartamo-nos
     zangados, dizendo que com a vida mas, no fundo, sabendo que connosco próprios.


Expectantes mas esquecidos. Traídos e traidores.
Corpo, imagem e sombra em contínua fuga. Sorventes de um ar que não há.
Restam-nos as frases curtas, as digestões rápidas e a vertigem do esquecimento.

        Ascenção, queda e redenção. Redime-nos a carne do corpo hospitaleiro que se entreabre para nos
    receber e onde entramos como quem regressa. Esse corpo encimado por um olhar, lava-nos com cheiros e
    humidades, afaga-nos com sabores, adivinha-se em mistérios e calores. Aí sim, o mundo isenta-se de
    retóricas, ausentando-se de explicações.

Certezas de pau como muletas, amparos, encostos, batotas...
Infiéis aos nossos mortos, descrentes de tudo e de nós
Já não carne e alma, mas tão somente próteses de retalho.

       Diz-nos mutilado: que te falta? Perna ou propósito? Mão ou inteireza? Memória ou tu mesmo e todo?
    Consola-te se dissermos: pele? Ou, pela manhã, pássaros? Pequenas coisas parecem-nos a nós as estrelas e
    os mistérios que nos devemos. Por isso, apenas te podemos devolver à tua voluntária solidão.

Mais do que perdidos, esquecidos da nossa perda.
Sem sermos gente nem ainda animais somos provisoriamente coisas
Numa montra miserável da cidade sem espelhos.

      Culpados todos, calemos a culpa. Como no lento e inexorável avanço dum exército napoleónico, há
    quem carregue o canhão, outro as batatas e outro, ainda, as botas do imperador.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Nocturnas Diárias



Petit Souvenir
(Insistir persistir desistir)

Não afligir nem ferir, proibir ou reprimir, não coagir nem exigir
Acudir, cingir e sorrir, intuir, tentar compartir para construir.
Não desistir nem invadir. Sem impingir cumprir. Nunca agredir.
Não carpir antes rir, não destruir, concluir ou encobrir, nem medir ou mentir,
pois há que ouvir e descobrir, muito onde coincidir ou confluir sem excluir nem presumir
Menos ainda imiscuir. Nada gerir nem querer conseguir, por isso nada de urdir...
Enfim não prostituir nem extorquir. Não (querer) adquirir ou possuir
Mas antes existir, sentir e, talvez até, transgredir

quarta-feira, 9 de maio de 2012


A Explicação do Mundo segundo um Guarda Nocturno


A Maia cheira mal (esta noite?)
A minha vida também não cheira por aí além.
Entre a merda industrial e a existencial
Existirá, talvez, a diferença invisível dos
Corpos que se não querem já.

Esta noite, esta noite

Magoar o papel com verdades universais
(“Ah, ele escrevia com uma navalha!”)
Que de tão sabidas se tornaram esquecidas
Parece agora exercício canalha.

Esta noite é a evidência dos meus dias

Mais do que não querer é, visceralmente depender
Dessa negação, de invisibilizar a carne
Que se não quer já, como num desmaio.
A agonia do desejo é o anúncio da morte

A noite dos lugares comuns, do duvidoso gosto.

O frio que sentes assusta-te... de caralho.
Não há casaco que te valha, nem mortalha
Nú na terra, vejo-te o olhar espantado
pelo desamparo e, juro, abraçava-te

Este cheiro anoitece-me de verdade

Esta noite, esta noite
Esta noite é a evidência dos meus dias
A noite dos lugares comuns, do duvidoso gosto
Este cheiro anoitece-me de verdade