Cada um mui agasalhado na sua vida
cada qual deveras encasacado no seu
retrato
e todos definitivamente assertoados nas
suas certezas.
Poderia
começar assim uma reflexão, um vou-ali-e-já-venho, uma
recriminação leve ou
sibilina. Em
todos os casos, desabafo ligeiro e pouco mais do que declaração de
voto. Mas, não
é disso que se
trata... O medo tem muitas caras e nós cara só uma. Assim como o
mar e as ondas talvez
quando “sou”
“somos”. Portanto ou caímos todos ou não tomba ninguém
Sonhei com uma casa e soube que apenas
ali poderia morar
Sonhei com uma mulher e de saber soube
que a podia amar
Como uma praia, um lago ou uma
lembrança para, enfim, descansar.
Quando se
contam sonhos mostram-se miudezas, intimidades, fraquezas.
Só essa atracção pelo
abismo,
digamos que
suicidária, poderá estar à altura ou fazer as vezes de
necessidade. Aos mortos resta a voz, por
isso se socorrem
da palavra. E nós, que nos julgamos vivos?
Quanto mais te vestes mais nú ficas,
esquecido das inclemências
do tempo, e ao mesmo tempo,
definitivamente, prisioneiro do tempo.
Frio é o que suportarmos, tudo o resto
é a eternidade dos adiados.
Grossas
grades, grandes silêncios. Distrações e adiamentos. Por temor ao
peso, baixamos o olhar até
cegar, deixamos
de rir, evitamos chorar. Liquefazemo-nos numa saudade que nos
aterroriza, apartamo-nos
zangados,
dizendo que com a vida mas, no fundo, sabendo que connosco próprios.
Expectantes mas esquecidos. Traídos e
traidores.
Corpo, imagem e sombra em contínua
fuga. Sorventes de um ar que não há.
Restam-nos as frases curtas, as
digestões rápidas e a vertigem do esquecimento.
Ascenção,
queda e redenção. Redime-nos a carne do corpo hospitaleiro que se
entreabre para nos
receber e onde
entramos como quem regressa. Esse corpo encimado por um olhar,
lava-nos com cheiros e
humidades,
afaga-nos com sabores, adivinha-se em mistérios e calores. Aí sim,
o mundo isenta-se de
retóricas,
ausentando-se de explicações.
Certezas de pau como muletas, amparos,
encostos, batotas...
Infiéis aos nossos mortos, descrentes
de tudo e de nós
Já não carne e alma, mas tão somente
próteses de retalho.
Diz-nos
mutilado: que te falta? Perna ou propósito? Mão ou inteireza?
Memória ou tu mesmo e todo?
Consola-te se
dissermos: pele? Ou, pela manhã, pássaros? Pequenas coisas
parecem-nos a nós as estrelas e
os mistérios
que nos devemos. Por isso, apenas te podemos devolver à tua
voluntária solidão.
Mais do que perdidos, esquecidos da
nossa perda.
Sem sermos gente nem ainda animais
somos provisoriamente coisas
Numa montra miserável da cidade sem
espelhos.
Culpados
todos, calemos a culpa. Como no lento e inexorável avanço dum
exército napoleónico, há
quem
carregue o canhão, outro as batatas e outro, ainda, as botas do
imperador.
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