sábado, 25 de fevereiro de 2012



“Acredito verdadeiramente que é possível criar, mesmo sem jamais ter escrito uma palavra ou pintando um quadro, apenas moldando a nossa vida interior. E isso também é uma proeza.”

Etty Hillesum (1914 – 1943)

There's Nothing Quite Like a Real Book



«Se eu tivesse um carro
havia de conhecer
toda a terra.
Se eu tivesse um barco
havia de conhecer
todo o mar.
Se eu tivesse um avião
havia de conhecer
todo o céu.
Tens duas pernas
e ainda não conheces
a gente da tua rua.»
  
Luísa Dacosta

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Hilda Hist - Do Desejo



Quem és? Perguntei ao desejo.
                Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


II

Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


III


Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.



IV

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


        DA NOITE

III

Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos. Vem funda e fria
Amolecida e terna, anêmonas que vi:
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.
Vem revestida às vezes de aspereza
Vem com brilhos de dor e madrepérola
Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.


IV

Dirás que sonho o dementado sonho de um poeta
Se digo que me vi em outras vidas
Entre claustros, pássaros, de marfim uns barcos?
Dirás que sonho uma rainha persa
Se digo que me vi dolente e inaudita
Entre amoras negras, nêsperas, sempre-vivas?
Mas não. Alguém gritava: acorda, acorda Vida.
E se te digo que estavas a meu lado
E eloqüente e amante e de palavras ávido
Dirás que menti? Mas não. Alguém gritava:
Palavras... apenas sons e areia. Acorda.
Acorda Vida.



V

Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz, encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjetura.
Águas que não bebi. Crespusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo
Antiqüíssima, nova. Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.


VI

O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.

O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Às Belas



Irresistible

Je sais ce que tu me reproches
Ce qui modère tes doux émois
Ce qui te déplaît tant en moi
Amour, c'est clair comme l'eau de roche
Allons, trêve de métaphysique
Puisque tu n'oses l'évoquer
Quitte à quelque part te choquer
Je parlerai de mon physique

Je suis irrésistible
Je suis comme Dieu me fit
Comme l'Eve de la Bible
La Madonne de Vinci
Mon regard indicible
Ma nuque de lady
La blonde mélodie
De mes boucles paisibles
Mon teint incorruptible
Mes lèvres de rubis
Te semblent inaccessibles
Le prélude interdit
D'un lointain paradis
Mais qu'ai-je de si terrible?
Je suis comme Dieu me fit
Irrésistible

Te voilà sombre et sans réplique
Mon cher, tu te fais tout petit
Je vois comme elle t'anéantit
Ma beauté aristocratique
Si ma silhouette longue et frêle
Est pour toi signe de froideur
S'il ne te faut que de l'ardeur
Je peux être aussi mieux que belle

Je suis irrésistible
Comme Satan me l'a dit
Sous ma taille flexible
Ce corpus delicti
Est un truit comestible.
Aux nobles appétits
Allons, prends donc pour cible
Ma cuisse de colibri
Mes reins immarcescibles
Et leur sombre incendie
Ma bouche est disponible
Et mes deux mains aussi
Je suis une maladie
Sexuellement transmissible
Comme Satan me l'a dit
Tu es irrésistible
Irrésistible

Alors c'est ça, c'est la déroute
La Bérézina, Waterloo
Il faut nourrir ta libido
D'autres piments sans aucun doute
Il te faut le charmant minois
D'une petite grosse à lunettes
D'un boudin, d'un tas, d'une charrette
Moi, je suis bien trop belle pour toi
Ce qu'il te faut
C'est un cageot
Une chèvre ou
Son légionnaire
Un simple trou
Ou bien ta mère


letra de Pierre Philippe 
canta Juliette

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Embebedem-se



Enivrez-vous
Il faut être toujours ivre, tout est là ; c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve. Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu à votre guise, mais enivrez-vous! Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge; à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est. Et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront, il est l'heure de s'enivrer ; pour ne pas être les esclaves martyrisés du temps, enivrez-vous, enivrez-vous sans cesse de vin, de poésie, de vertu, à votre guise.
Charles Baudelaire, Les petits poèmes en prose

Embebedem-se
A verdade é que se deve estar sempre bêbado: é essa a única questão. Para não se sentir o terrível peso do tempo a vergar-nos as costas e a deitar-nos ao chão, precisamos de nos embebedar sem descanso. Com quê? Com vinho, com poesia, ou com uma virtude à vossa escolha... mas embebedem-se! E se por vezes, seja nos degraus de um palácio, ou nas ervas duma fossa, acordarem com a bebedeira esvaída ou desaparecida, peçam ao vento, a uma onda, a uma estrela, a um pássaro, a um relógio; a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rebola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntem-lhes que horas são. E o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, hão-de responder-vos que são horas de se embebedarem; para não serem os martirizados escravos do tempo, embebedem-se, embebedem-se incansavelmente  com vinho, com poesia, com virtude, à vossa escolha
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

(trad. JM)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012




Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos...
É o internacionalismo monetário!

FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimor do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pro-lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si e palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Num encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretém-te filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt'e-quer, messe gigantesca, vem-te vem, vem-te VIM, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho, VIM no Politeama, VIM no Águia D'ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora, olha a Música no Coração da Indira Gandhi, olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d'olho, o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo, saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde. Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta destabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro! Estás aí a olhar para mim, estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus zodíacos: Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é? Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote! Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho? Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te filho, entretém-te! Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva, e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
 A one, a two, a one two three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Come on you son of a bitch! Come on baby a ver se me comes! 'Camóne' Luís Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal,zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer e acabamos todos numa sardinhada à integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu, um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho? Pois, o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como antes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas pá? A culpa é dos partidos pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta pá, pois pá, é só paleio pá, o pessoal na quer é trabalhar pá! Razão tem o Jaime Neves pá! (Olha deixaste cair as chaves do carro!) Pois pá! (Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?) É pá, deixa-te disso, não destabilizes pá! Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata. Uma porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril, esta confusão pá, a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo, mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah? Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah? Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá, isto é tudo a mesma carneirada! Oh sr. guarda venha cá, á, venha ver o que isto é, é, o barulho que vai aqui, i, o neto a bater na avó, ó, deu-lhe um pontapé no cu, né filho? Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar, ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, não é nada comigo, não é nada comigo, né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada, precisas de paz de consciência, não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, ah?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande, tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade? Quer-se dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas, estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão, eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto, viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o arbitro, gatuno! Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores, entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais, entretém-te filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho, entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar, entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes, entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada, milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Deng Xiaoping está a tratar da tua vida com o Jimmy Carter, o Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II, tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou! Vão-te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer, votas à esquerda moderada nas sindicais, votas no centro moderado nas deputais, e votas na direita moderada nas presidenciais! Que mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma, para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né? Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega. Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! Descontrai baby, come on descontrai, afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscopio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas! Piramiza filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá! Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-chula, pop-chula pop-chula, iehh iehh, J. Pimenta forever! Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti, não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia; não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal; não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte; não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros, ah? Sempre a merda do futuro, e eu que me quilhe, pois pá, sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é "pequeno burguês", o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto, vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho, filhos da puta, deixem só um bocadinho, deixem-me só para sempre, tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega, sossego porra, silêncio porra, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me morrer descansado. Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado, eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto, eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa, deixem-me só porra, rua, larguem-me, desopila o fígado, arreda, T'arrenego Satanás, filhos da puta. Eu quero morrer sozinho ouviram? Eu quero morrer, eu quero que se foda o FMI, eu quero lá saber do FMI, eu quero que o FMI se foda, eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua, desandem daqui para fora, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...
Mãe, eu quero ficar sozinho... Mãe, não quero pensar mais... Mãe, eu quero morrer, mãe.
Eu quero desnascer, ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora. Mãe, por favor, tudo menos a casa em vez de mim, outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e de me encontrar fugindo, de quê mãe? Diz, são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento. E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viajem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto, lembrar nota a nota o canto das sereias, lembrar o depois do adeus, e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar...
Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes, assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: Olá camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer, aqui está a minha arma para vos servir. Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lavacolhos, assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o carvalhal? É nosso! Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grândola Vila Morena. Diz lá, valeu a pena a travessia? Valeu pois!
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto. Muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.


José Mário Branco - FMI
Nota: FMI foi editado originalmente em 1982 no maxi Som 5051106, e reeditado em 1996 em 'Ser Solidário' ( EMI-Valentim de Carvalho).

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O'Neill's: o Alexandre Manuel; o Vahía; mais o de Castro; finalmente o O'Neill




No reino do Pacheco

às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Querer viver (deixai-nos rir !)
seria muito exigir ...
Vida mental ? com certeza !
Vida por detrás da testa
será tudo o que nos resta ?
Uma idéia é uma ideia
- e até parece nossa! -
mas quem viu uma andorinha
a puxar uma carroça?

Se à ideia não se der
o braço que ela pedir,
a ideia por melhor
que ela seja ou queira ser,
não será mais que bolor,
pão abstracto ou mulher
sem amor!

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não vivemos.

Neste reino de Pacheco
- do que era todo testa,
do já nada dizia,
e só sorria, sorria,
do que nunca disse nada
a não ser prà galeria,
que também não o ouvia,
do que, por detrás da testa,
tinha a testa luzidia,
neste reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-la de pernas prò ar?

Por isso, aqui, acolá
tudo pode acontecer,
que as ideias saem fora
da testa de cada qual
para que a vida não seja
só mentira, só mental...



De porta em porta

- Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre a gente.

- Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô.

- dinheiro? Isso não!
Já sei, pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...

Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?

- Para ir ver a mãe?
essa é muito forte!
ele não tem mãe
e não é do Norte...

- Vítima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?


O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no  tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis)
costureiras reais e irreais
operários
      (assim assim)
escriturários
      (muitos)
intelectuais
      (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
paísessuspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho  medo
que é justamente
o que o medo quer)

            *

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos



Fraldiqueiros

Coitarados!
Meninos, tiveram pouca mamã.
Carências afectivas afunilaram-nos psiquícamente
desde a impoética infância até este corrimento sentimental
em que, grandinhos, se compensam, comprazem.
continuam a gotejar.

Coitarados!
Gulosos de pontas de dedos,
perdem-se em beijoqueirices, diminutivas ternurinhas.
Têm sempre rebuçadinhos d'alma para as mulheres.
Falam freud ao colo das amigas.

Fraldiqueiros...
Vais levar-lhes isso a nojo, machão?
Mulheres gostam. Riem, prazidas.
«Venha cá à mamã!»

O golpe do coitadinho (não confundir com o golpe
do irmãozinho, esse na base do esquema da alma gémea)
é o que estás a ver: saltar para o regaço e pedir nhém nhém
em nome do segismundo, daquele que dizia, salvo erro:
A alma? Geme-a...

Fraldiqueiros...
Sempre prontos a mandarem beijinhos por teleféricos de saliva.
Engatinhantes, tiram do estojo complexos em forma de saxofone
e tocam-lhes a pingona freudista canção do bandido.

Fraldiqueiros...
Mulheres gostam? Até onde?


domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ataraxia epicurista e não pirrónica



"non fui, non sum, non curo"
(não fui, não sou, não me importa)
no tempo em que a morte era (também) futuro escreviam-se testamento e epitáfio, sendo que o primeiro era obrigatoriamente personalizado. Destamente-se não "tendo", epitafe-se mesmo não "sendo". Oxalá os deuses tenham mais em que pensar...

sábado, 4 de fevereiro de 2012

JP Simões








Meu amor, eu volto já
Vou por aí, vou ver o mar
Ouvir o canto da sereia
E duvidar, vou duvidar,
Do céu, do sol, do chão, do ar,
Vou-me afundar
na ferida escura e esquiva
que me tem
Cativo,
Imóvel,
Sem solução
Meu amor, se eu naufragar
Se me perder no teu olhar
Desaparecer sob o luar
Me consumir de bar em bar
Na bruma bêbada de um cais
Gritar que quero mais que a vida
E mais e mais e mais
Perdoa
Perdi-me
Na confusão

Se porém eu me encontrar
Talvez o mar se acalme no meu peito
E eu possa pôr os pés no chão e respirar
E abraçar a solidão
E ocupar o meu lugar
Na vasta e tensa imensidão
E então voltar
E, se, tu ainda me quiseres
Meu amor, se desejares
Dou-te tudo o que sobrar
De mim

Hay que beber para recordar y comer para olvidar. Pepe Carvalho




Las Recetas de Carvalho

(Prefácio)


Nenhum escritor é inteiramente responsável pelo comportamento dos seus personagens, e muito menos pela do seu personagem central. Carvalho, por exemplo, é muito próprio e os seus gostos pessoais apenas são referíveis pela benevolência de minha escrita. Muitas vezes os leitores dos romances da série Carvalho perguntam-me sobre o porquê da predileção culinária por vezes excessiva do Sr. Carvalho. Costumo dar uma resposta inteligente: que assumo a responsabilidade, mas que Carvalho nunca disse nada de relevante sobre ela. Eu costumo usar a culinária como uma metáfora para a cultura. Comer e engolir significam matar um ser que esteve vivo, seja animal ou vegetal. Se comermos directamente o animal morto ou uma alface, poderia dizer-se que somos selvagens. Mas se o marinarmos  para posteriormente o cozinharmos com a ajuda de umas ervas aromáticas da Provença e de um copo de vinho velho , então teremos uma operação cultural requintada, ainda que baseada na brutalidade e na morte. Cozinhar é uma metáfora da cultura e do seu conteúdo hipócrita, e na série Carvalho faz parte do tríptico de reflexões sobre o papel da cultura. Os outros dois seriam o queimar de livros que tanto agrada a Carvalho e a própria concepção do romance como um veículo para o conhecimento da realidade, a partir da mistura de cultura e subcultura encarnada na série de Carvalho. Mas mesmo Pepe Carvalho, tão parco em considerações teóricas, já disse que por vezes queima livros para se vingar tanto pelo pouco que estes lhe ensinaram a viver como pelo quanto o afastaram de  uma relação espontânea e entusiasmada com a realidade. No entanto, Carvalho não tem uma teoria culinária que não seja a minha e marimba-se no sistema literário onde tem sido incluido. Tanto se lhe dá passar à História da Literatura como à História da Subliteratura . Por vezes  até tentei conduzi-lo pelo caminho certo, propus-lhe um maior grau de ambiguidade psicológica e ideológica para reconciliar-se com a crítica partidária da opacidade essencial do romance como o conhecimento absorvido. Sem resultado. O pior é que sou eu quem pagar as consequências. Eu, que de vez em quando eu tropeço com críticos do formalismo russo madrileno e estudiosos da literatura em geral,que me olham de cima, lembrando-se sem dúvida  das situações tão  vulgarmente carvalhianas nas quais ele se põe a cozinhar, a  masturbar-se ou a filosofar sem que a harmonia interna da história assim o exiga. Tenho-o avisado, mas sem resultados. Agora é altura de fazer um balanço das receitas de Carvalho, suas e de outros, embora quando se apropria de receitas alheias sempre lhe acrescenta algumas modificações. Carvalho é gastronomicamente  eclético. Eis aqui a sua única conotação pós-moderna. A base de seus gostos é formada por uma matéria essencial: o paladar da memória, a pátria sensorial da infância. Por isso os seus gostos fundamentais têm como origem a cozinha popular, pobre e imaginativa de Espanha, a cozinha de sua avó, Dona Francisca Pérez Larios, a que ele dedica o nome de uma notável sanduíche, incluída neste receituário. O nosso homem integra gastronomia catalã, doutras partes de  de Espanha e e de diversas gastronomias estrangeiras. Mas uma coisa é o que Carvalho  come e outra é o que cozinha. Por exemplo, nunca se viu cozinhar um Oreiller a la  Belle  Aurore, como o faz Sánchez Bolín em "Asesinato en Prado del Rey", embora ocasionalmente se concentre no desenvolvimento de um prato complicado como salmis de pato. Carvalho cozinha por um impulso neurótico, quando você está deprimido ou tenso, e quase sempre procura companhia para comer o que cozinhou, para evitar o onanismo da simples alimentação e alcançar o exercício de comunicação. E nessas ocasiões encontra comensais propícios, (maiêuticos), chamem-se Fuster, Charo ou Biscuter. Observe o seguidor inteligente da série como o seu relacionamento com Bromuro (RIP) era puramente alcoólico e raramente nutritivo, como se Carvalho o quisesse ajudar a suicidar-se lentamente. Mas sobre Bromuro coloquemos um véu porque ainda hoje é tema de  discussão entre mim e Carvalho. Este repreende-me por tê-lo morto e eu respondo-lhe que em literatura se mata sempre por causa das circunstâncias literárias e que nunca se derrama uma única gota de sangue real, nem se utiliza  outro manto senão o do silêncio das páginas: os espaços em branco. Outra questão geradora de  discussão, desta vez alheia ao repetidos confrontos entre mim e Carvalho, é a avaliação sobre
a real sabedoria gastronómica e culinária de Carvalho. Já o surpreendi em vários erros causados pela vulgaridade de seu paladar original e por uma uma progressiva assimilação de conhecimentos nem sempre apreendidos a tempo. Por exemplo, nas primeiras edições de "Tatuaje", recomenta Sautemes quando deveria recomendar qualquer branco não moellé,e em "Los Mares del Sur"  põe na boca do Marquês de Munt um pedante discurso  sobre o morteruelo regado com Chablis. Grave erro.O morteruelo, como qualquer mousse ou paté deve ser acompanhado por um Montbrazillac ou um Sauternes, Chablis é que nunca. Também merece condenação a  fideuá  (prato idêntico à paella) elaborada  em "Los pájaros de Bangkok", verdadeiro atentado a este requintado prato, que ele converte  numa espécie de estranho betão feito de farinha de arroz e de todos os tipos de animais, quando fideuá fideuá se faz  com massa de farinha de trigo, possivelmente com massa, tipo "aletria", de acordo com a minha receita , a única da minha própria autoria , profundamente correctora da  de Carvalho descrita nesse romance. Sobre o discutível gosto de Carvalho – o ser questionável, não significa que o não tenha – realce-se as escassas referências a sobremesas nas suas abundantes digressões gastronómicas. Poucas e simples, para o desespero dos amateurs desta cozinha rigorosamente inocente. Este bárbaro hábito Carvalhiano deriva da sua filosofia compulsiva e devoradora. Tigelas. A ele ficam-lhe bem as tijelas, e se entre o cru e o cozido prefere o cozido, e entre o doce e o salgado se inclina para este, provas evidente de primitivismo, o que impede a aprovação do palato de Carvalho segundo os padrões de requinte . Não interprete o leitor a minha reflexão crítica como uma demonstração de hostilidade para com a minha personagem, embora seja verdade que as nossas relações nem sempre sejam as melhores. Simplesmente, a minha responsabilidade e a minha credibilidade manifestam-se em relação ao leitor, meu senhor, mais importante do que o meu personagem, que apenas tem um valor instrumental, ainda que  ele nisso não acredite e tenha  cometido para comigo actos de desrespeito que um dia lhe podem custar muito caro. Por exemplo, nunca Carvalho me convidou para comer em sua casa alguns dos seus pratos. Talvez espere que seja eu a insinuá-lo, mas vai esperar em vão porque não é hábito de um escritor deixar-se manipular pelos seus personagens. Além disso, muitas vezes quando nos encontramos em um bar para discutir um desenvolvimento narrativo ou uma incompatibilidade entre a minha escrita e o seu comportamento, a minha imaginação e os seus desejos, nunca ele fez o gesto de me convidar. Nem um miserável café. Gesto cheio de hostilidade, de má-educação, e que me levou a fazer o impossível para que tenha progressivas dificuldades económicas nos livros que ainda faltam à série. Se espera reformar-se confortavelmente está muito enganado.Farei o que for preciso para o pôr a acabar os seus dias sem outra comida que que não sejam arroz com bacalhau e algumas sandes. Não é crueldade. É instinto de auto-defesa. Apenas quem criou um personagem habitual  poderá entender o calvário que representa aguentar as suas impertinências. Peço desculpas por este impulso de confessionalismo crítico e insisto que o receituário que se segue é revelador da melhor alma gastronómica do personagem e dum estado da cultura na qual se confundem as fronteiras do ecléctico e do sincrético. Poderíamos chegar a esta conclusão de que os gostos gastronómicos de Carvalho são ecléticos na seleção e sincréticos na tecnologia, embora o mais próximo da realidade fosse aceitar estas saborosas propostas como um património humano, muito mais do que um património do Sr. José Carvalho Tourón

Manuel Vázquez Montalbán



(trad. JM)