sábado, 4 de fevereiro de 2012

Hay que beber para recordar y comer para olvidar. Pepe Carvalho




Las Recetas de Carvalho

(Prefácio)


Nenhum escritor é inteiramente responsável pelo comportamento dos seus personagens, e muito menos pela do seu personagem central. Carvalho, por exemplo, é muito próprio e os seus gostos pessoais apenas são referíveis pela benevolência de minha escrita. Muitas vezes os leitores dos romances da série Carvalho perguntam-me sobre o porquê da predileção culinária por vezes excessiva do Sr. Carvalho. Costumo dar uma resposta inteligente: que assumo a responsabilidade, mas que Carvalho nunca disse nada de relevante sobre ela. Eu costumo usar a culinária como uma metáfora para a cultura. Comer e engolir significam matar um ser que esteve vivo, seja animal ou vegetal. Se comermos directamente o animal morto ou uma alface, poderia dizer-se que somos selvagens. Mas se o marinarmos  para posteriormente o cozinharmos com a ajuda de umas ervas aromáticas da Provença e de um copo de vinho velho , então teremos uma operação cultural requintada, ainda que baseada na brutalidade e na morte. Cozinhar é uma metáfora da cultura e do seu conteúdo hipócrita, e na série Carvalho faz parte do tríptico de reflexões sobre o papel da cultura. Os outros dois seriam o queimar de livros que tanto agrada a Carvalho e a própria concepção do romance como um veículo para o conhecimento da realidade, a partir da mistura de cultura e subcultura encarnada na série de Carvalho. Mas mesmo Pepe Carvalho, tão parco em considerações teóricas, já disse que por vezes queima livros para se vingar tanto pelo pouco que estes lhe ensinaram a viver como pelo quanto o afastaram de  uma relação espontânea e entusiasmada com a realidade. No entanto, Carvalho não tem uma teoria culinária que não seja a minha e marimba-se no sistema literário onde tem sido incluido. Tanto se lhe dá passar à História da Literatura como à História da Subliteratura . Por vezes  até tentei conduzi-lo pelo caminho certo, propus-lhe um maior grau de ambiguidade psicológica e ideológica para reconciliar-se com a crítica partidária da opacidade essencial do romance como o conhecimento absorvido. Sem resultado. O pior é que sou eu quem pagar as consequências. Eu, que de vez em quando eu tropeço com críticos do formalismo russo madrileno e estudiosos da literatura em geral,que me olham de cima, lembrando-se sem dúvida  das situações tão  vulgarmente carvalhianas nas quais ele se põe a cozinhar, a  masturbar-se ou a filosofar sem que a harmonia interna da história assim o exiga. Tenho-o avisado, mas sem resultados. Agora é altura de fazer um balanço das receitas de Carvalho, suas e de outros, embora quando se apropria de receitas alheias sempre lhe acrescenta algumas modificações. Carvalho é gastronomicamente  eclético. Eis aqui a sua única conotação pós-moderna. A base de seus gostos é formada por uma matéria essencial: o paladar da memória, a pátria sensorial da infância. Por isso os seus gostos fundamentais têm como origem a cozinha popular, pobre e imaginativa de Espanha, a cozinha de sua avó, Dona Francisca Pérez Larios, a que ele dedica o nome de uma notável sanduíche, incluída neste receituário. O nosso homem integra gastronomia catalã, doutras partes de  de Espanha e e de diversas gastronomias estrangeiras. Mas uma coisa é o que Carvalho  come e outra é o que cozinha. Por exemplo, nunca se viu cozinhar um Oreiller a la  Belle  Aurore, como o faz Sánchez Bolín em "Asesinato en Prado del Rey", embora ocasionalmente se concentre no desenvolvimento de um prato complicado como salmis de pato. Carvalho cozinha por um impulso neurótico, quando você está deprimido ou tenso, e quase sempre procura companhia para comer o que cozinhou, para evitar o onanismo da simples alimentação e alcançar o exercício de comunicação. E nessas ocasiões encontra comensais propícios, (maiêuticos), chamem-se Fuster, Charo ou Biscuter. Observe o seguidor inteligente da série como o seu relacionamento com Bromuro (RIP) era puramente alcoólico e raramente nutritivo, como se Carvalho o quisesse ajudar a suicidar-se lentamente. Mas sobre Bromuro coloquemos um véu porque ainda hoje é tema de  discussão entre mim e Carvalho. Este repreende-me por tê-lo morto e eu respondo-lhe que em literatura se mata sempre por causa das circunstâncias literárias e que nunca se derrama uma única gota de sangue real, nem se utiliza  outro manto senão o do silêncio das páginas: os espaços em branco. Outra questão geradora de  discussão, desta vez alheia ao repetidos confrontos entre mim e Carvalho, é a avaliação sobre
a real sabedoria gastronómica e culinária de Carvalho. Já o surpreendi em vários erros causados pela vulgaridade de seu paladar original e por uma uma progressiva assimilação de conhecimentos nem sempre apreendidos a tempo. Por exemplo, nas primeiras edições de "Tatuaje", recomenta Sautemes quando deveria recomendar qualquer branco não moellé,e em "Los Mares del Sur"  põe na boca do Marquês de Munt um pedante discurso  sobre o morteruelo regado com Chablis. Grave erro.O morteruelo, como qualquer mousse ou paté deve ser acompanhado por um Montbrazillac ou um Sauternes, Chablis é que nunca. Também merece condenação a  fideuá  (prato idêntico à paella) elaborada  em "Los pájaros de Bangkok", verdadeiro atentado a este requintado prato, que ele converte  numa espécie de estranho betão feito de farinha de arroz e de todos os tipos de animais, quando fideuá fideuá se faz  com massa de farinha de trigo, possivelmente com massa, tipo "aletria", de acordo com a minha receita , a única da minha própria autoria , profundamente correctora da  de Carvalho descrita nesse romance. Sobre o discutível gosto de Carvalho – o ser questionável, não significa que o não tenha – realce-se as escassas referências a sobremesas nas suas abundantes digressões gastronómicas. Poucas e simples, para o desespero dos amateurs desta cozinha rigorosamente inocente. Este bárbaro hábito Carvalhiano deriva da sua filosofia compulsiva e devoradora. Tigelas. A ele ficam-lhe bem as tijelas, e se entre o cru e o cozido prefere o cozido, e entre o doce e o salgado se inclina para este, provas evidente de primitivismo, o que impede a aprovação do palato de Carvalho segundo os padrões de requinte . Não interprete o leitor a minha reflexão crítica como uma demonstração de hostilidade para com a minha personagem, embora seja verdade que as nossas relações nem sempre sejam as melhores. Simplesmente, a minha responsabilidade e a minha credibilidade manifestam-se em relação ao leitor, meu senhor, mais importante do que o meu personagem, que apenas tem um valor instrumental, ainda que  ele nisso não acredite e tenha  cometido para comigo actos de desrespeito que um dia lhe podem custar muito caro. Por exemplo, nunca Carvalho me convidou para comer em sua casa alguns dos seus pratos. Talvez espere que seja eu a insinuá-lo, mas vai esperar em vão porque não é hábito de um escritor deixar-se manipular pelos seus personagens. Além disso, muitas vezes quando nos encontramos em um bar para discutir um desenvolvimento narrativo ou uma incompatibilidade entre a minha escrita e o seu comportamento, a minha imaginação e os seus desejos, nunca ele fez o gesto de me convidar. Nem um miserável café. Gesto cheio de hostilidade, de má-educação, e que me levou a fazer o impossível para que tenha progressivas dificuldades económicas nos livros que ainda faltam à série. Se espera reformar-se confortavelmente está muito enganado.Farei o que for preciso para o pôr a acabar os seus dias sem outra comida que que não sejam arroz com bacalhau e algumas sandes. Não é crueldade. É instinto de auto-defesa. Apenas quem criou um personagem habitual  poderá entender o calvário que representa aguentar as suas impertinências. Peço desculpas por este impulso de confessionalismo crítico e insisto que o receituário que se segue é revelador da melhor alma gastronómica do personagem e dum estado da cultura na qual se confundem as fronteiras do ecléctico e do sincrético. Poderíamos chegar a esta conclusão de que os gostos gastronómicos de Carvalho são ecléticos na seleção e sincréticos na tecnologia, embora o mais próximo da realidade fosse aceitar estas saborosas propostas como um património humano, muito mais do que um património do Sr. José Carvalho Tourón

Manuel Vázquez Montalbán



(trad. JM)





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