sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Tempo



de passarmos o ano,
ou dos anos passarem (por nós e nós por ele)
ou tudo ser o mesmo

até deixar de ser

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tripas à Cafreal (4... e última)

IV
 Acabado o almoço fiz-me à cruzada Tuga. Isto não vai ficar assim. Não pode e mandei-me para o posto da policia do comando central.
 Na portaria deviam estar aí uns 4 camisas cinzentas...um deles sentado e os outros todos de pé...numa mesa pequena estava um caixote com muitas cartas de condução, tipo venda ambulante, à espera dos seus donos. Decidido perguntei..."vim levantar a minha carta de condução...quero pagar uma multa e levantar a minha carta".
 O camisa cinzenta chefe (o que estava sentado) afirmou..."a secrtaria fecha às 15:30...tem que virr na 2ª feira"...como não ia convidar aquela gente toda para drink nenhum, resmunguei e vim-me embora.
 Telefonei ao tuga zé, convicto que isto era caso para tribunal e que ele tinha que me arranjar um advogado...o tuga zé, que nasceu aqui, ouviu pacientemente a minha história e disse sempre que sim..."telefona ao pedro que ele ajuda-te" e terminou o telefonema.
 Decidido rumei ao último reduto da lei...a Embaixada da Tugolandia.
 Chegado à Jules Nyerere estacionei o carro e entrei no baluarte da civilização...passei pela segurança, parei à frente da recepcionista e reportei o meu problema "queria falar com alguém para me ajudar...roubaram-me a carta de condução"...telefonema para cima...telefonema para baixo...e atendeu uma tal de vanda..."estou sim"..."sim, faça o favor de dizer"...disse a vanda..."daqui fala um cidadão tuga...um policia roubou-me a carta...e não sei agora o que fazer...isto não é legal"..."olhe" disse a vanda "vai ter que ir ao consulado...Moçambique é um estado soberano... aqui são só assuntos políticos"..."OK" disse eu e continuei "e o consulado está aberto a esta hora?"...lacónicamente a vanda respondeu "Não"..."e então como vou fazer?"..."vai ter que escrever uma carta"..."e para onde...não me pode dar o e-mail"..."posso sim"...e aguardei pelo endereço "tugatuga@tugolandia.pt"..."obrigado" retorqui, resmunguei outra vez...e saí.
 Eram 17h e Maputo estava com um calor fantástico. Pelo caminho reparava, como reparo sempre, numa aquitectura que eu sei bem ver. Esquina por esquina o meu olhar vai tropeçando no ar duma África que sempre foi minha. O meu pai, também ele africano, ensinou-me de menino a por os olhos no céu.
 Rumei a minha casa para fazer a carta...mas desta vez para a minha namorada...África. Pelo meio recordei as palavras da RDP "hoje morreu um filho de Moçambique...Carlos Pinto Coelho"...foi então que percebi a languidez tropical daquele pivot eterno da "nossa" televisão:
 "A toda a equipa que produziu, realizou e levou até si este programa...um bom fim de semana" e fui para casa a pensar no jantar.
 Alexandre Sales"

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Tripas à Cafreal (3)

III
Subitamente o calor produziu um pensamento africano...tinha uma fotocópia da carta de condução na minha pasta, que tinha tirado de manhã.
 Não hesitei e marchei sobre a casa que autentica as fotocópias...já me conhecem...sou tuga... tenho um ar gingão...dou boas gorjas...entrei, comprimentei e fiz charme..."a martinha está boa"..."tudo beeem...brigado"...(vocês não sabem mas a martinha é a filha da menina que tira as fotocópias para serem reconhecidas).
 "são as cópias do costume"..."muito beeem, são 10 meticais"...dei 17 e disse o habitual "podem ficar com o troco...um beijinho para a martinha!"..."brigado" e num minuto a mãe da martinha sem saber já tinha produzido uma nova carta de condução ao Tuga.
 Telefonei ao edmundo e avisei "já não precisa de vir...já resolvi o problema"..."OK Dôtor. Tudo beem"
 Entrei de novo no carro e segui atrasado para o Business Lunch. Estacionei no meio da confusão e um lavador veio-me pedir os 10 paus habituais...resmunguei à tuga...não dei nada e segui o meu caminho a olhar para o relógio.
 Quando cheguei ao restaurante, já estava atrasado 15 minutos...mas mesmo assim levei uma seca de mais 45 à espera dos meus business partners...hoje África estava mesmo em grande .
 Entrei e partilhei a minha história com algum pessoal que já me conhece...foi quando um mulato afirmou..."cuidado com o stress, tuga, cuidado com o stress!"...mais uma vez registei a dica e prossegui.
 Sentei-me, esperei, liguei o computador e mandei uns mails para Portugal...o meu partner chegou sem o plural e almoçamos sem stress.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Tripas à Cafreal (2)

II
 Mas o calor apertava e eram já 13h. Já estava a queimar a hora do Business Lunch. Foi aí que tirei o carro do estacionamento e comecei a subir a Samora Machel...quando drrpente viro...sim...digo mesmo drrpente...azar o meu...desta vez tinha mesmo feito uma infracção trrivel...entrei por um sentido proibido.
 "Prri prri prri" apita o policia de camisa branca ordenando-me para encostar...e eu parei...apresentou-se, bateu continência e disse "Boa tarrde", "Boa tarde" repliquei..."A sua carrta por favor" retorquiu o avô... "Aqui está ela"...disse eu.
 O meu Tugo-pensamento voava e bebia o que via...um verdadeiro Policia africano...devia ser avô para aí de 60 netos...e os dentes já deviam ter caído fazia décadas.
 "O Sênhór não viu o sinal?" disse o avô..."não reparei Sr. Cabo"..."então vai levarr murta"..."vão serr mir meticais".
 "Mil Meticais, Sr Cabo!!...não tenho esse dinheiro"...e tentei a táctica que tinha resultado antes com a mulher policia..."mas Sr. cabo...não quer resolver o problema de outra maneira?"...mas ele não parou de escrever no livro de multas...apenas disse "o patrão é que sabe!"..."vamos ter que ir ao coomando" e prosseguiu.
 Quando tal, o Avô policia entrou no carro dos camisas cinzentas e fugiu...sim...simplesmente fugiu com a minha carta...novamente África a revelar-se...mas desta vez sem drink agendado.
 Num 1º impulso pensei para mim...Bem...hoje é 6ª...3ªa feira arranco para Portugal...no fim de semana ando de taxi...não há crise...tudo se resolve...e de pronto telefonei para a empresa que me tinha alugado o carro..."Edmundo"..."sim Dôtor"..."sou eu o Tuga"..."sim Dôtor, já perrcebi"..."olhe edmundo apreenderam-me a carta e o melhor é vir buscar o carro já...vou passar a andar de taxi"..."tudo beem Dôtor...estou vindo"..."mas quanto tempo demora?"..."aí uns 20 minutos"..."tudo bem...estou à sua espera na Ateneia".
 Pelo meio fiz um telefonema para o tuga Nuno..." ó pá...nuno...tu queres saber o que me fizeram...pá...queres?"..."diz lá"..."um policia roubou-me a carta"..."mas ele não pode fazer isso. É ilegal..."O pá...mas fez...e agora estou tramado. o que vale é que na 3ª sigo de volta para a tugolandia e tiro uma 2ª via"..."vai ao comando fazer queixa...eles não podem ficar com a tua carta...isso é um documento estrangeiro". Desligamos e registei a dica.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Bi - Tê



Cimo de Vila

Se precisares de um bom artigo de couro,
uma carteira para a tua vida
ou um cinto de fivela bem cromada,
Vai à Batalha e desce a Rua do Cimo da Vila.
Ignora a atmosfera de tempo suspenso
e não te deixes intimidar pelas mulheres lânguidas
que te chamam filho, à porta das pensões.
Lembra-te que vais pelo couro.
À tua direita, verás a Casa Crocodilo.
- entra e diz que vais da minha parte.

   Carlos Tê, in "Cimo da Vila"

Tripas à Cafreal (1)

Porque o picaresco não tem geografias de latitudes nem longitudes começo a publicar um texto (que dividi em 4 partes) de um amigo recém-ido para Moçambique

 

Carta para a minha namorada



I



"17 de Dezembro de 2010, 6ª feira, 13:00h, sol a pino, calor tropical em Maputo e eu, Tuga Anginho, recém saído do banco Corporate com o suor a escorrer-me pelas costas.
 Vestido de camisa branca cintada, jeans, óculos Ray-Ban e pasta a condizer, espreito com confiança as oportunidades...I am Business Man...a real one...e faço uso dos inglesismos que me acompanharam na adolescência...estou em casa...sim estou em casa...aqui fala-se Anglo-Português...quando aprender Xangana estarei perfeito.
 Meia hora, antes uma mulher policia, com uma camisa não sei bem de que cor, tinha alegado uma paragem ilegal do meu carro à margem da intransitável Zedequias Manganhela.
 Foi mesmo aí que África se revelou em todo o seu esplendor...subornei-a com 80 paus (40 para ela e 40 para um ele que a acompanhava)...e no fim deixou-me o numero de telefone para um drink..."manda um bip...vai...manda um bip"..."põe aí Carrmo Policinha para não se esqueceerr"...fantástico...senti-me um ás e mandei um sms para a Tugolandia a reportar...subornar uma Policia e agendar um encontro em simultâneo...é fabuloso...pura e simplesmente fabuloso.




(continua amanhã)

domingo, 26 de dezembro de 2010

EXCESSOS DE LINGUAGEM




Ainda que desperte de novo a Banca
e a Indústria se reerga do escombro,
jamais esta prosódia crua e franca
enfeitará com renda o desassombro.
Façam da pronúncia obra de arte,
apertem o paradigma do decoro,
elevem a polidez a estandarte,
redefinam o conceito ao desaforo,
mas a cauta e sábia ronha popular
terá na imprecção e no impropério
remédio eficaz para a falta de ar.
Até a dama chique sai do sério,
desce do vison e arreia a giga,
se lhe dão mostarda a cheirar.
A própria semântica que diga
se o sangue do vocábulo fino e acetinado
não é o mesmo do vocabulário rude e malcriado.
Perguntem aos peritos da linguística
se a figura interjectiva então carago?
não espevita a mais morcona narrativa.
Que se arrepiem os cultores da estilística,
mas nada como um foda-se! bem enfático
para culminar um bom pico dramático.

    Carlos Tê, in "Cimo de Vila" (Afrontamento, 2010)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

mogno e bafio



Teve uma morte quieta.
«apagou-se» dirão mais tarde
«como um passarinho» acrescentarão

Afinal foi um ir-se cómodo
à vista da cómoda (da tia ?)

E foi um final adequado
para quem à mesma vista
tantas vezes se tinha vindo.


Porto, 21/12/2010

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Ferreira Gullar

FIGURA - FUNDO

a pintura, digamos,
               é mentira

isto é:
      uma pêra
      pintada
      não cheira

       não se dilui 
    em xarope,
    água rala e azeda, é
    pintura e por isso
    dura
mais que qualquer pêra verdadeira

e por isso também, digamos,
    a pêra pintada a falsa
   pêra
   por ser mentira
   (por ser 
   cultura e não natura)
   desta sorte
         nos alivia
        da perda e do podre
        da morte

e se a mentira fosse verdadeira ?
como fazê-la ?

mas escute:
            o que é falso
é a pêra que a pintura figura
não a pintura
            a côr
            o traço
            a pasta
            a fatura
por que então
não fazer
em vez da pintura-pêra
a pintura pura?

a verdade é que
a fruta pintada
não tem carnadura
não se pode comê-la
- é impaste, tintura
na tela
mas pode - e por isto -
ser bela
e, de outra maneira,
verdadeira

é que a fruta-pintura
        é apenas figura
        sobre um fundo
        de tela
        (de tinta
        de pasta)

mas
    e se a beleza
    não basta?

e se o pintor
    quer fazê-la
nascer da pasta
do fundo
(do fundo do fundo)
como a pêra real nasce do mundo?

(onde começa a pêra?
   na pereira? onde
começa a pereira?
   em que dia?
   em que hora?
   em que século?
surgiu
   a árvore da pêra?

   a cõr 
   da pêra? o sabor
   da fruta pêra?)

E o pintor então dissolve
     a figura da pêra
na pasta escura do fundo
          para
    sem mentira
   dizê-la
   e nela
   dizer o mundo

Pintar a partir de então
     é despintar
     fundir a forma
     na escuridão
   (na pasta, na lama)
     fundir os brancos
   os verdes os azuis
     na suja
     matéria sem luz

e assim
      pelo avesso
o pintor
chega ao fim
isto é, ao começo:
     da pasta escura
     (do fundo pintado)
ressurge a figura

(ao contrário
de antes, quando
da figura
nascia o fundo).

in, "Em alguma parte alguma" (3ª ed., 2010)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Os mundos que as voltas dão (1)

Há um ror de anos (20? 30?), numa livraria da Imprensa Nacional, o meu olhar guiou-me as mãos para um livro. Só quem já esteve numa dessas livrarias entende o que quero dizer.
Gostei do título ("Da Cegueira dos Pintores"), atraía-me o autor (Júlio Pomar), interessava-me o assunto (a pintura).
Lembro-me do dia (e do sol de primavera e do frio), lembro-me da rua, e nunca me perdoei o juizo que tive (... era muito novo) ao não esvaziar, literalmente, os bolsos e salvá-lo (a ele livro) daquela aridez de monos e bafio erudito. E, quem sabe, não me ter salvo (a mim) ...
Depois, nunca mais o vi. Descruzámo-nos numa espécie de namoro, de longo e anarónico noivado, Eu sei (vagamente) por onde andei; e o que não me lembro invento (o que é outra forma de saber). A ele não lhe pergunto, mas gosto de imaginar que ficou à minha espera. Sei é que ficou em mim numa espécie de existência adormecida, enrolada num cobertor de aparente esquecimento...
Passados tantos anos, do nada (?), revi o nosso encontro... ou sonhei com ele, já não sei e não importa. Dispus-me a atravessar oceanos ou desertos para o encontar. Por uma espécie de ironia (quase infantil) tinha desaparecido... Não havia registos nem ninguém tinha ouvido falar dele. Talvez esse jogo das escondidas tenha transformado a  vontade em necessidade.
Por fim, dei com ele numa biblioteca escondido no nome do tradutor e não do autor. Por não querer falar de emoções não vos conto como o trouxe colado a mim, sem o abrir, nem a pressa com que galgei avenidas e passantes. Quando, finalmente, o tive solenemente para mim, ainda me estava reservado um contratempo: aquele não era "bem o "meu" livro. Por todas as páginas se entrepunham entre nós sublinhados toscos, sinais de outra leitura, cheiro de outro leitor, outro livro, em suma. De safa na mão, tudo removi. Até ficarmos ele e eu e um ror de anos (20?30?).
E mais não digo, a não ser que afinal há salvação (ou salvações que por serem mais do mesmo devem ficar no singular).

... isto foi o que se passou  com um livro que é uma voz que é uma pessoa.

Por saber a diferença entre a solidão da magia e o espectáculo do ilusionismo, também sei que estas coisas não são partilháveis. Ainda assim aqui deixo o livro:

https://docs.google.com/leaf?id=0B4AGe0kYCYitZGNhYjNhYmItYjA1OS00NGNmLTljZGQtZTcyZTE4OTJmNjNj&hl=en

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Premonição

Quando a boca amarga e o estômago arde
E na boca o cigarro é o beijo que nos resta,

Quando o silêncio nos corrói
e uma improvável gaivota não nos deixa esquecer

Sabemos que lá fora o escuro
é só um dia de sol apagado
e há-de nascer uma noite
de luz e gente e morte

pesadelos (noites brancas, tardes quentes)

                                                       Jules Gervais-Courtellemont - Durmiendo la siesta em Sevilla



Dorme vestido
Para não (ver/saber)es
O que se te colou
à pele



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Vagamente Woolf

"Nada existe, até ser contado"