quarta-feira, 7 de dezembro de 2011



Momento de poesia

Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sózinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

José de Almada Negreiros, 1941 in "Obras Completas, vol IV - Poesia" (ed Estampa, 1971)

sábado, 3 de dezembro de 2011

Manuel Bandeira





Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

dedicado ao malafaia (carlos)

TOC, TOC, TOC, TOC...
Artur Azevedo
O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e
não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara
mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.
Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que
ambos moravam. Não iam a parte alguma.
Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido
mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal,
assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É
verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca
mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto,
não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.
A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges;
todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de
casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o
sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.
Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o
Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não
sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por
casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a
conheciam.
O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.
- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa;
mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...
O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:
- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?
- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há
homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe
pegue...
- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.
- Tu?... Apesar de...?
- Apesar de tudo!
- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!
- Por quê?
- Seria ridículo!
- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?
- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!
- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu
nome.
- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de
autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é
apresentar-te ao velho.
- Pois está dito!
No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse
às mãos de Idalina:
"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada,
tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos
de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo
indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O
obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor
profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."
A resposta não se fez esperar:
"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma
vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração,
autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e
prevenido por mim."
À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e
pediu-lhe que o acompanhasse.
No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os
recebeu de braços abertos.
- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido
muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.
- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se
trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que
dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o
senhor não considera um obstáculo a...
- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona
Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.
- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?
- Já lhe disse que sim.
- Bom; nesse caso, vou chamá-la.
E erguendo a voz:
- Idalina?
- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges
como um hino de amor.
- Vem cá, minha filha!
Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e
quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça
tinha uma perna de pau!
Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência
de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em
pranto.
- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.
- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...
- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela
infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.
Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de
subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos
seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:
- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?
- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar
de lhe faltar uma perna!
Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.
O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:
- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as
pernas...

Prosaico

SAUDAÇÃO A  JOÃO  CABRAL  DE  MELO  NETO 


João Cabral de Melo Neto
Você não se pode imitar,
mas incita a ver mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,
o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem «vocação de bagaço»
e o que resiste no osso ou no «aço
do osso», mais essencial.


Tacteamos matéria pobre
com sua mão que nada encobre
e ouvimos assoviar
versos (sem pássaro) de cobre.


De prosaico há-de ser chamado
pelos do «estilo doutor»,
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário verde?
O lugar-comum se repeter
aqui ou do outro lado...


Porém adoptemos prosaico
num sentido que ao bacharel
escapará, é matemático.
Prosaico mas não aquele
que em verso é incapaz de verso,
para estar sempre a pôr em verso,
uma sorte de tradutor
para poesia
e às vezes até um guia
de político amador.


Exemplo: Pablo Neruda.
Prosaico, mas sem literatura,
sem o discursivo, sem a mistura
do panfleto, notícia, ladaínha.


Prosaico: o não enfático, 
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é a palo seco,
o que não toma por ouyto
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.

Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo
uma tinta de virtude: 
é um modo de ser, 
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.

Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema «O Rio»
cita Berceo: quiro
qu compogamos io e tú una prosa»?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido...):
«... escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente»?

Quanto a mim, ainda o bonito
que me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas - e lindas! -
e o meu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com falta de ar...

Ó Poeta, 
não é motivo para não o saudar!

27-08-1959

Alexandre O'Neill, in "Abandono Vigiado" (Guimarães ed. , 1960)



Joaquim:
 O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

 As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

O'Neill


Fala a sério e fala no gozo
fá-la p'la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala claro

Fala ao ouvido e fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.