quarta-feira, 7 de dezembro de 2011



Momento de poesia

Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sózinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

José de Almada Negreiros, 1941 in "Obras Completas, vol IV - Poesia" (ed Estampa, 1971)

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