sábado, 3 de dezembro de 2011

Prosaico

SAUDAÇÃO A  JOÃO  CABRAL  DE  MELO  NETO 


João Cabral de Melo Neto
Você não se pode imitar,
mas incita a ver mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,
o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem «vocação de bagaço»
e o que resiste no osso ou no «aço
do osso», mais essencial.


Tacteamos matéria pobre
com sua mão que nada encobre
e ouvimos assoviar
versos (sem pássaro) de cobre.


De prosaico há-de ser chamado
pelos do «estilo doutor»,
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário verde?
O lugar-comum se repeter
aqui ou do outro lado...


Porém adoptemos prosaico
num sentido que ao bacharel
escapará, é matemático.
Prosaico mas não aquele
que em verso é incapaz de verso,
para estar sempre a pôr em verso,
uma sorte de tradutor
para poesia
e às vezes até um guia
de político amador.


Exemplo: Pablo Neruda.
Prosaico, mas sem literatura,
sem o discursivo, sem a mistura
do panfleto, notícia, ladaínha.


Prosaico: o não enfático, 
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é a palo seco,
o que não toma por ouyto
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.

Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo
uma tinta de virtude: 
é um modo de ser, 
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.

Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema «O Rio»
cita Berceo: quiro
qu compogamos io e tú una prosa»?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido...):
«... escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente»?

Quanto a mim, ainda o bonito
que me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas - e lindas! -
e o meu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com falta de ar...

Ó Poeta, 
não é motivo para não o saudar!

27-08-1959

Alexandre O'Neill, in "Abandono Vigiado" (Guimarães ed. , 1960)



Joaquim:
 O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

 As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

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