domingo, 7 de março de 2010

Carlos Drummond de Andrade

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Romane - Swing Guitar

sexta-feira, 5 de março de 2010

José de Almada Negreiros

Rio-me, sim, rio-me
para ver se se solta a carne desta caveira
coberta de simulacros de vida

Rio-me sim rio-me do que fazem
do que crêem, de tudo o que todos usam
e eu-mesmo o fiz e cri como qualquer
até que de asco me despeguei disso tudo
pra morrer de verdade, sem fingir.
Ri-me e espantei-me de me ter rido assim
ri-me por não poder suportar
sentir a morte em mim.
Que a morte seja eu quem a mereça
e não o limite até onde eu possa suportar.
Por todos já morreu um há séculos
e repeti-lo é sempre por todos.
Por todos é no que não creio.
Morrer por todos é o que fazemos cada um
mesmo sem querer.
Mas morrer por cada um,
sobretudo se se é o próprio
é mais do que morrer por todos.
Admiro a renúncia mas não em mim
que renunciado nasci de herança.
Morro por mim.
Devo ao meu sangue aqueles dias
de que gerações inteiras se privaram.
Sou um exemplar daquela humanidade que hoje apenas a sabemos sonhar
uma lembrança viva de quando tudo era vivo até cada um.

Trouxeram-me clandestino através das tribos, das raças, de catacumbas e de catedrais
dÍmpérios, de Revoluções, de guerras
e das mais maneiras que dizem respeito a todos.
A todos! eis o que me faz morrer.
Por todos não fica ninguém há séculos e séculos
e os que parece terem deixado um nome
não deixaram senão renome
são de facto um cimo de todos,
o cadáver que ficou por cima na pirâmide dos mortos.
Tenho uma fé única: é cada um!
Cansado da humanidade creio só nas pessoas
naquelas que levam consigo
e em nenhuma ocasião se perdem da sua própria mão.

Eunice de Souza (India)

Autobiográfico

Pronto, aí vai.
Matei o meu pai quando tinha três anos.
Envolvi-me em romances vários
e sempre me sí mal.
Não aprendi quase nada com a experiência.
Caminho para o abismo com uma
monótona regularidade.

Os meus inimigos dizem-me que sou crítica porque
de facto torço-me de inveja
e preciso de me casar seja como for.
Os meus amigos dizem que não sou
totalmente desprovida de talento.

im, tentei o suicídio.
Arrumei as roupas mas
não deixei bilhetes. Surpreendeu-me
acordar na manhã seguinte.

Um dia a minha alma
deteve-se fora de mim
a ver-me contorcer
em esgares e balbucios
a pele apertada
sobre os meus ossos.

Pensava que o mundo inteiro
me tentava desfazer
cortar-me, penetrar-me
com uma lâmina de barbear.

Então descobri
um cliché: era isso que eu queria
fazer ao mundo.

in "Poemas Escolhidos" (trad. Ana Luisa Amaral)
Cotovia/ Fund.Oriente (2001)

segunda-feira, 1 de março de 2010

Vladimir Nabokov



Assim começa o livro “Gargalhada na Escuridão” de Vladimir Nabokov

Era uma vez um homem chamado Albinus, que vivia em Berlim, Alemanha. Era rico, respeitável, feliz. Um dia abandonou a esposa por uma amante jovem. Amava; não era amado — e sua vida terminou em desastre.

Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão resumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos.