sexta-feira, 5 de março de 2010

José de Almada Negreiros

Rio-me, sim, rio-me
para ver se se solta a carne desta caveira
coberta de simulacros de vida

Rio-me sim rio-me do que fazem
do que crêem, de tudo o que todos usam
e eu-mesmo o fiz e cri como qualquer
até que de asco me despeguei disso tudo
pra morrer de verdade, sem fingir.
Ri-me e espantei-me de me ter rido assim
ri-me por não poder suportar
sentir a morte em mim.
Que a morte seja eu quem a mereça
e não o limite até onde eu possa suportar.
Por todos já morreu um há séculos
e repeti-lo é sempre por todos.
Por todos é no que não creio.
Morrer por todos é o que fazemos cada um
mesmo sem querer.
Mas morrer por cada um,
sobretudo se se é o próprio
é mais do que morrer por todos.
Admiro a renúncia mas não em mim
que renunciado nasci de herança.
Morro por mim.
Devo ao meu sangue aqueles dias
de que gerações inteiras se privaram.
Sou um exemplar daquela humanidade que hoje apenas a sabemos sonhar
uma lembrança viva de quando tudo era vivo até cada um.

Trouxeram-me clandestino através das tribos, das raças, de catacumbas e de catedrais
dÍmpérios, de Revoluções, de guerras
e das mais maneiras que dizem respeito a todos.
A todos! eis o que me faz morrer.
Por todos não fica ninguém há séculos e séculos
e os que parece terem deixado um nome
não deixaram senão renome
são de facto um cimo de todos,
o cadáver que ficou por cima na pirâmide dos mortos.
Tenho uma fé única: é cada um!
Cansado da humanidade creio só nas pessoas
naquelas que levam consigo
e em nenhuma ocasião se perdem da sua própria mão.

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