quarta-feira, 9 de julho de 2014

Um dia, tudo isto será vosso


"Atisbo" Tecnica mixta / Lienzo 70 x 50 cm.
© Nicoletta 2012

   Desilusões humanas. O imenso espelho do antigo guarda fatos, tenta-me, num sussurro onde reconheço uma fraterna comunidade. Se a carne fraquejar agora (como usa, em frente daquele espelho), hão-de suceder-se as rotinas, os esbanjamentos inúteis, impossiveis,  niquentos.
   Por estes dias que sombras do passado se passeiam em mim como em courela ou latifúndio, que é como quem diz terra abandonada, mas com dono num cartório onde falecem teimosos velhos papéis (ilegíveis, cobertos de carimbos e dedadas gordurosas), as dores que me paralizam, vejo-as como correntes de ar passeando-se nesta ruina, sinto-as como proprietárias absentistas, presenças distantes, habitando Babilónias, tratando a cuspo e desprezo o que, convém não esquecer, apesar de pouco (e cada vez menos) os sustenta e lhes permite pagar serviços, criadagens, tédios e quezílias.
   Se acontecer, esquecer-me quem sou, ou se ainda sou, prometo apurar o ouvido e ouvir; fechar os olhos e tornar a ser capaz de ver. Seja como fôr, já eterno escravo, hei-de obedecer a uma ordem não dada e antes de silenciosamente fechar a porta (que ainda assim rangerá), apagar a luz, aceitando respirar o bafio e os ruídos que sempre habitam as casas, inabitadas, há mais tempo do que a memória é capaz de reflectir no imenso espelho.