quarta-feira, 31 de março de 2010

Vinicius Braga de Rubem e Moraes

Mensagem a Rubem Braga

Os doces montes cônicos de feno
(Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)

A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô.
Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da Caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também
Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se agüenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo.
Digam-lhe que o Carlos Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento
Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jamineiros. Digam-lhe que tem havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo Capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sombrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.

guernica 3D

Pacheco




segunda-feira, 29 de março de 2010

Jules Renard

"Não sei se Deus existe. Mas seria melhor para sua reputação que não existisse"

Tridimensionalisando

   Vejo (e interessam-me) as ideias como esculturas e não como tijolos.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Prévert (O Sol ou o Amor)

                                                               Robert Doisneau - Jacques Prévert in a Telephone Booth

O Tempo Perdido

Diante da porta da fábrica
o operário estaca de súbito
o bom tempo puxou-o pela manga
e quando ele se volta
e vê o Sol
tão vermelho e redondo
sorrindo no céu em brasa
pisca-lhe o olho
com toda a familiaridade:
Olha lá camarada Sol
não achas
que só mesmo um parvalhão
daria um dia tão bonito
a um patrão?

Jacques Prévert in "Palavras"

terça-feira, 23 de março de 2010

Robert Heinecken, Autoeroticism, 1975

 
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[© Robert Heinecken, Courtesy of Pace/MacGill Gallery]
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sábado, 20 de março de 2010

António Ramos Rosa




Para um amigo tenho sempre um relógio

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Viagem Através duma Nebulosa (1960)

Boris Vian







Gostaria
Gostaria
De vir a ser um grande poeta
E que as pessoas
Me pusessem
Muitos louros na cabeça
Mas aí está
Não tenho
Gosto suficiente pelos livros
E penso demais em viver
E penso demais nas pessoas
Para estar sempre contente
De só escrever vento



Boris Vian
canções e poemas

terça-feira, 9 de março de 2010

Woody Allen (Allen Stewart Konigsberg)




Is sex dirty? Only if it's done right !

  "Everything"Everything You Always Wanted to Know about Sex" (1972)


segunda-feira, 8 de março de 2010

domingo, 7 de março de 2010

LIVRO DO CÉU E DO INFERNO – Jorge Luis Borges e Bioy Casares

O Lugar do pai
Ditoso é o filho que tem o seu pai no Inferno
Provérbio Genovês (citado por MATEO ALEMÁN em “Guzmán de Alfarache”)


Áurea Mediocritas
Malherbe não estava muito seguro de que houvesse outra vida e quando lhe falavam do inferno ou do paraíso, dizia: “Vivi como todos, quero morrer como todos, quero ir para onde todos vão”.
TALLEMAN DES RÉAUX, in “Les Historiettes, XXIX (c.1659)

Os corvos e o céu
Os corvos afirmam que um só corvo poderia destruir os céus. E sem dúvida assim é, mas o facto não prova nada contra os céus, porque os céus não significam mais do que a impossibilidade de corvos.
FRANZ KAFKA, in “Reflexões sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro caminho” (1917-1919)


O reverso dos dias
Quando um homem se despoja do corpo etéreo, vive de forma retrospectiva a sua vida. Percorre todas as suas experiências, mas de um modo novo.
Pensemos que um homem morre aos setenta anos: ele vive de forma retrospectiva até os quarenta, quando deu uma bofetada num outro e sente a dor que o outro sofreu. Aos trinta, roubou a mulher a um amigo e, quando chegar a essa fase, sente-se enganado por essa mulher.
RUDOLF STEINER in “Las manifestaciones del Karma,III” (1921)

Contra o céu
A felicidade, eternal ou temporal, não é a recompensa que o homem procura. Não o direi em voz alta porque uma crença predilecta do homem é o seu apego a essa felicidade de que invariavelmente desdenha e por isso convém-lhe acreditar numa felicidade ulterior: não tem que deter-se e prová-la; pode entregar-se à áspera e amarga tarefa que lhe alegra o coração e, no entanto, encantar-se com este conto de fadas de uma eternal reunião social e disfrutar da fantasia de que ao mesmo tempo ele é ele e é um outro e de que se reunirá com os seus amigos, todos bem postos e castrados e sempre amáveis – como se o amor não se alimentasse dos defeitos da pessoa amada.
R.L.STEVENSON, in “Letters, III”. 2 de Janeiro de 1886

Carlos Drummond de Andrade

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Romane - Swing Guitar

sexta-feira, 5 de março de 2010

José de Almada Negreiros

Rio-me, sim, rio-me
para ver se se solta a carne desta caveira
coberta de simulacros de vida

Rio-me sim rio-me do que fazem
do que crêem, de tudo o que todos usam
e eu-mesmo o fiz e cri como qualquer
até que de asco me despeguei disso tudo
pra morrer de verdade, sem fingir.
Ri-me e espantei-me de me ter rido assim
ri-me por não poder suportar
sentir a morte em mim.
Que a morte seja eu quem a mereça
e não o limite até onde eu possa suportar.
Por todos já morreu um há séculos
e repeti-lo é sempre por todos.
Por todos é no que não creio.
Morrer por todos é o que fazemos cada um
mesmo sem querer.
Mas morrer por cada um,
sobretudo se se é o próprio
é mais do que morrer por todos.
Admiro a renúncia mas não em mim
que renunciado nasci de herança.
Morro por mim.
Devo ao meu sangue aqueles dias
de que gerações inteiras se privaram.
Sou um exemplar daquela humanidade que hoje apenas a sabemos sonhar
uma lembrança viva de quando tudo era vivo até cada um.

Trouxeram-me clandestino através das tribos, das raças, de catacumbas e de catedrais
dÍmpérios, de Revoluções, de guerras
e das mais maneiras que dizem respeito a todos.
A todos! eis o que me faz morrer.
Por todos não fica ninguém há séculos e séculos
e os que parece terem deixado um nome
não deixaram senão renome
são de facto um cimo de todos,
o cadáver que ficou por cima na pirâmide dos mortos.
Tenho uma fé única: é cada um!
Cansado da humanidade creio só nas pessoas
naquelas que levam consigo
e em nenhuma ocasião se perdem da sua própria mão.

Eunice de Souza (India)

Autobiográfico

Pronto, aí vai.
Matei o meu pai quando tinha três anos.
Envolvi-me em romances vários
e sempre me sí mal.
Não aprendi quase nada com a experiência.
Caminho para o abismo com uma
monótona regularidade.

Os meus inimigos dizem-me que sou crítica porque
de facto torço-me de inveja
e preciso de me casar seja como for.
Os meus amigos dizem que não sou
totalmente desprovida de talento.

im, tentei o suicídio.
Arrumei as roupas mas
não deixei bilhetes. Surpreendeu-me
acordar na manhã seguinte.

Um dia a minha alma
deteve-se fora de mim
a ver-me contorcer
em esgares e balbucios
a pele apertada
sobre os meus ossos.

Pensava que o mundo inteiro
me tentava desfazer
cortar-me, penetrar-me
com uma lâmina de barbear.

Então descobri
um cliché: era isso que eu queria
fazer ao mundo.

in "Poemas Escolhidos" (trad. Ana Luisa Amaral)
Cotovia/ Fund.Oriente (2001)

segunda-feira, 1 de março de 2010

Vladimir Nabokov



Assim começa o livro “Gargalhada na Escuridão” de Vladimir Nabokov

Era uma vez um homem chamado Albinus, que vivia em Berlim, Alemanha. Era rico, respeitável, feliz. Um dia abandonou a esposa por uma amante jovem. Amava; não era amado — e sua vida terminou em desastre.

Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão resumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos.