sexta-feira, 30 de abril de 2010

Alberto Pimenta



CIVILIDADE

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

in "Ascenção de Dez Gostos à Boca" (1977)

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PORCO TRÁGICO 1

conheço um poeta (*)
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que elefaz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

in, "In Modo Di-Verso" (1983)

(*) - Fernando Pessoa (JM)

domingo, 25 de abril de 2010

                                                                                        Fotografia Sidney Hartha



PRESSÁGIO
A tinta das canetas
reflui de antipatia
e impregnadas, assíduas
cambam as borrachas
Não há fita de máquina
que o uso não esmague
o vaivém não ameace
de dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
de pausas na cabeça
Vozes inarticuladas
adensam, durante elas
uma tempestade recôndita
E nubladas carregam-se
as suspensões
encadeando em nós
o ritmo do presságio.

Sebastião Alba, in "A Noite Dividida" (Assírio & Alvim)

sábado, 24 de abril de 2010

A BELEZA CONVULSIVA





A Colecção Prinzhorn foi reunida entre 1918 e 1921 por Hans Prinzhorn, historiador de arte e psiquiatra, cujo objectivo era coleccionar e catalogar obras produzidas por pessoas internadas em hospitais psiquiátricos.
Tendo inicialmente um objectivo pedagógico, a colecção esperava demonstrar os paralelismos existentes entre a arte dos doentes psiquiátricos e obras de «arte primitiva ou de arte infantil» - por outras palavras, trabalhos fora da corrente dominante de cânones artísticos hegemónicos, e de acordo com o mito das fontes <
Mostrando um pequeno núcleo de trabalho da colecção, a exposição sublinha a travessia de fronteiras entre o documentário e o estético, e funciona como um testemunho espantoso não só da doença mental mas, o que é mais perturbante, das respostas artísticas à hospitalização e à encarceração duradoiras. Sujeitos, mais frequentemente do que não, à etiqueta já desactualizada e generalizadora de dementia praecox, sabemos agora que muitos destes pacientes possuem já noções de desenho ou de design visual (por escolas, lições privadas ou por uma formação técnica). Sabemos também que para além de serem expressões «espontâneas», muitas das obras foram produzidas sob instigação directa para a colecção,com a promessa de recompensas dentro das instituições. Tal como nos é dito incisivamente no catálogo, «a noção de Prinzhom de criatividade inconsciente revela-se um caso de desejado pensamento expressionista».


A exposição é, assim, duplamente fascinante, O tema revelando as raízes ideológicas da própria colecção, mostrando ao mesmo tempo a grande diversidade de trabalhos cuja influência sobre - ou semelhança a trabalhos de artistas do século XX, que confortavelmente operam dentro dos «cânones» é espantosa. Sabemos, por exemplo, que Max Ernest se encontrava particularmente interessado na colecção - a similitude dos seus primeiros trabalhos com os de August Natterer (nascido em 1868 e que vem a morrer em 1933, num hospital psiquiátrico em Rottweil) é extraordinária. Outras obras, que apresentam o espaço preenchido de forma obsessiva e que nos dão a sensação de uma ordem imposta (calendários, lista de datas, mapas) representam o que muitos artistas conceptuais contemporâneos sonham realizar mas que por qualquer motivo não conseguem.



LUTA CONTRA O TÉDIO
Mesmo que as analogias estabelecidas entre estes trabalhos, produzidos em condições de dureza física e emocional, e os artistas do século XX possam parecer espúrias como uma falsa ligação - eles não deixam contudo, de nos dar um sentimento de humildade: eles são a evidência de uma prática em que a relação entre o trabalho e a vida interior reverbera de intensidade.


A meticulosidade do desenho, da escrita, das formas de colorir e de colar, os bestiários, as cosmologias, e as invenções (veja-se o «arado bicicleta») são testemunho do tempo imensurável de encarceração e da luta contra o tédio. Joseph Heinrich Grebing enche páginas com calendários (eg. Calendar of my 20th Century - chronology of Catholic Youths and Maidens: a Hundred Year Calendar). Emma Hark opta pelas filas cerradas de rabiscos com uma única mensagem impressionante (Husband- come). Alfons Fraenki inventa máquinas «úteis» e desenha divertidas bandas desenhadas de animais; Franz Malter escreve um romance críptico; Rudolf Heinrichsoffen enche blocos com aguarelas que combinam fait-divers com elementos autobiográficos. Katharina Detael faz um boneco em tamanho natural, fálico e aterrador. Agnes Richter cose em pano cinzento da instituição um casaquinho de senhora que borda com escritos autobiográficos e outros. 



E isto só para citar alguns exemplos.
Esta é uma exposição extraordinária, onde o que os surrealistas chamavam de «beleza convulsiva» se encontra enquadrada por comentáriosprecisos mesmo se lacónicos.
"BEYOND REASON: ART AND PSYCHOSIS" (Harward Galery. Londres)

Ruth Rosengarten, in “Visão” (6 de Março de 1997)








sexta-feira, 23 de abril de 2010

pachecos há uns quantos...

Nas pálpebras a lágrima - o alfôfar, 
como se diz no bem falar romântico
                            António de Sousa


A Bela do Bairro

Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê ? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque.

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor.

Fernando Assis Pacheco, in "Variações em Sousa" (1987)