sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Homenagem materna (Leonor Praça Pintora)

   O Surrealismo está presente em muitos aspectos do fantástico, do neo-simbolismo, do neofigurativismo, do abstraccionismo lírico, do conceptualismo, do objectualismo ... Cesariny considera, em 1973, que são surrealistas, além dele próprio, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves, Raul Perez (n.1944), Lima de Freitas, Leonor Praça (1936-1970), Gonçalo Duarte, René Bertholo, Lourdes Castro, Eduardo Luis, Martim Avilez e Malangatana Valente (n.1936)

Rui Mário Gonçalves, in "Pintura e Escultura em Portugal (1940/1980)
ICAL (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa)

Homenagem materna (Leonor Praça Ilustradora)

 

Recordar Leonor Praça e o seu álbum Tucha e Bicó


Originalmente editado em 1969, como o primeiro volume da colecção de O Século «Pim-Pam-Pum», e, posteriormente, alvo de reedição na Plátano, numa colecção dedicada a Leonor Praça, onde se incluem obras marcantes como Rama, o Elefante Azul (1970), de Isabel da Nóbrega ou O Veado Florido (1972), de António Torrado, Tucha e Bicó (1969) constitui um marco relevante no panorama literário português no que ao público infantil diz respeito.
Desde logo, pela filiação no género do álbum narrativo, praticamente desconhecido em Portugal naquela altura, mas que, na Europa e nos Estados-Unidos, exactamente nesta época, ia revelando todas as suas potencialidades. Mas também pela dimensão lúdica que percorre o livro, centrado nas actividades levadas a cabo por duas crianças de 3 e 4 anos, com especial destaque para os brinquedos e as brincadeiras, os passeios e as férias, a escola e a família e que influenciará criadoras como Maria Keil e Manuela Bacelar.
Destinada a leitores muito pequenos, a narrativa é protagonizada pelos dois irmãos que emprestam o nome ao livro, e narrada pela menina, dando conta, num discurso de primeira pessoa, assumidamente infantil, da realidade vivida pelas duas crianças, com especial atenção para a vida familiar, as suas rotinas e actividades marcantes. Promovendo a identificação por parte dos leitores, que se reconhecem no universo recriado, assim como nas personalidades dos dois pequenos irmãos, o livro estimula a observação das imagens e a forma como elas completam um texto marcado pela brevidade, simplicidade e contenção. Caracterizado pela sequência de frases afirmativas que, a cada virar de página, se vão sucedendo, o texto não apresenta uma estrutura narrativa de tipo tradicional. Aliás, isento de conectores de qualquer tipo que esclareçam relações de sentido ou de causalidade entre as afirmações, o texto caracteriza-se, por esse facto, por uma certa aproximação ao discurso infantil, linear e aditivo, obrigando o leitor à realização de inferências de modo a estabelecer ligações semânticas e sintácticas entre as frases, criando, assim, nexos de lógica. Em alguns casos, a cumplicidade entre o texto e as imagens é tal que os deícticos, como é o caso do determinante demonstrativo «estes», apontam para a mensagem pictórica e, logo, extratextual.
Actuando em complemento do texto, as ilustrações não só pormenorizam a informação que ele disponibiliza como, em alguns casos, colaboram no preenchimento dos espaços em branco que ela integra, condicionando, pelo menos em parte, a leitura. Veja-se, por exemplo, o caso da frase «O meu irmão tem muitos brinquedos engraçados.» que, sem especificar de que tipo de brinquedos se trata, solicita uma resposta da imagem, identificando pelo menos alguns deles e orientando, desta forma, a interpretação do leitor.
Neste caso, como em outros, a leitura realizada resulta, como o mostraram Lawrence Sipe ou Maria Nikolajeva, do cruzamento de informações oriundas de duas linguagens distintas, actuando em relação sinérgica e potenciando-se mutuamente. O final do álbum exige o mesmo tipo de inferências. A afirmação «À noite estamos cansados de brincar… Boa noite!», com que o livro termina, não só conclui uma longa enumeração de actividades realizadas pelas duas crianças, como permite perceber, também com a colaboração das imagens que representam os dois irmãos em trajes de noite, que chegou a hora de dormir, parecendo, deste modo, fechar um ciclo de acção com o necessário descanso. Estimula, além disso, uma certa sugestão dialogal com o leitor, activamente implicado pela fórmula de despedida com que o livro encerra, marcando o fim da leitura e da história, mas também o fim do dia e da agitação que o caracteriza.
Com recurso a uma técnica muito simples, baseada no desenho do contorno e no preenchimento, a cor, talvez com caneta de feltro, dos espaços, a ilustradora explora as sugestões de expressividade sugeridas pelos rostos e posturas das personagens, ao mesmo tempo que joga com padrões e motivos cromaticamente muito fortes, como os fundos e as grandes manchas, criando contrastes visualmente muito apelativos, mas mantendo a sugestão de ingenuidade que também caracteriza o texto.
Precocemente desaparecida, vítima de doença, aos 34 anos de idade, Leonor Praça é ainda responsável pela ilustração, nas edições Europa-América, de duas obras de Alves Redol, A flor vai pescar num bote (1968) e A flor vai ver o mar (1968), assim como pelas imagens dos já mencionados livros de Isabel da Nóbrega e António Torrado ou ainda de A Maria Bé e o finório Zé Tomé (Plátano, 1974), de Manuel Ferreira. A pintora, nascida no Porto em 1936, estreou-se, com uma exposição individual, em 1949 e participou em numerosas exposições colectivas tendo deixado parte significativa da sua obra inédita.

Ficha bibliográficaPRAÇA, Leonor (1969). Tucha e Bicó, Lisboa: O Século, col. Pim-Pam-Pum (nº 1)

Ana Margarida Ramos
Universidade de Aveiro;
                                                              membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

http://ainocenciarecompensada.blogspot.com/2009/03/recordar-leonor-praca-e-o-seu-album.html 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Jorge de Sena

OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS




Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.


Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.


O cântico das aves — não há cânticos,
mas só canários de 3.º andar e papagaios de 5.º
E a música do vento é frio nos pardieiros.


Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.


A minha terra não é inefável.
A vida na minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.



Jorge de Sena

lady lazarus




Voltei a fazê-lo.
Uma vez em cada dez anos
Lá consigo —

Uma espécie de milagre ambulante, a minha pele
Brilhante como a de um candeeiro nazi,
O meu pé direito

Um pisa-papéis,
O meu rosto vulgar, fino
E de judia cepa.

Apaga-me da toalha
Oh, inimigo meu.
Meto medo a alguém?

O nariz, as covas dos olhos, os dentes todos?
O hálito acre
Desaparecerá um dia.

Daqui a pouco, daqui a pouco a carne
Que a sepultura comeu ficará
À vontade comigo como se em sua casa.

Mas eu sou uma mulher optimista.
Só tenho trinta anos.
E como os gatos tenho sete vidas para viver.

Esta é a Número Três.
Que porcaria de vida
A aniquilar todos os dez anos.

Quantos milhões de filamentos.
Uma multidão a roer amendoins
Empurra-se para ver

Sôfregos a despirem-me
Que fantástico strip tease.
Meus senhores, minhas senhoras

Estas são as minhas mãos
Os meus joelhos.
Talvez eu seja apenas pele e osso,

Contudo, sou precisamente a mesma mulher.
A primeira vez foi aos dez anos.
Foi um acidente.

Da segunda vez eu quis mesmo
Ir até ao fim e nunca mais regressar.
Voltei fechada

Como uma concha.
Tiveram de me chamar e voltar a chamar
E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.

Morrer
É uma arte, como outra coisa qualquer.
E eu executo-a excepcionalmente bem.

Executo-a de forma a parecer-se com o inferno.
Executo-a de forma a parecer real.
Acho que se podia dizer que tenho um dom.

É bastante fácil executá-la numa cela.
É bastante fácil executá-la e ficar como se nada fosse.
É cena de teatro

Regressar em pleno dia
Ao mesmo lugar, ao mesmo rosto, ao mesmo brutal
E divertido grito:

Um milagre!
Que me põe K.O.
Há que pagar.

Para ver as minhas cicatrizes, há que pagar
Para ouvir o meu coração —
É assim mesmo.

Há que pagar, e pagar bem.
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou por um bocado do meu cabelo ou da minha roupa.
Vá lá então, então, Herr Doktor.
Então, Herr Inimigo.

Sou o seu opus,
Sou a sua jóia de estimação,
Um bebé todo em ouro

Que se funde com um grito.
Volto-me e ardo.
Não pense que subestimo as suas grandes preocupações.

Cinza, cinza —
Mexe e atiça.
Carne, osso, nada mais ali existe —

Um pedaço de sabonete,
Uma aliança de casamento,
A coroa em ouro de um dente.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Tende cuidado
Muito cuidado.

Renasço das cinzas
Com o meu cabelo fulvo
E devoro homens como faço ao ar. 

sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´água
1996




Esquecimentos Imperdoáveis (Carlos de Oliveira)

Bolor

Os versos
que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarte deserto
os rostos a apagar-se
no frémito do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor

Carlos de Oliveira