terça-feira, 23 de junho de 2015

A modos de desculpas



    Com os cuidados ao mano mais novo, mais os cuidados à gata resgatada (ou regateada) ao «já vais embora», tem faltado tempo e cuidados a esta sombra de blog. E assim continuará por uns tempos, calculo.

   À laia de paliativos cuidados à má consciência que não me larga, deixo uma brevíssima homenagem a um escritor que nunca deixou de me emocionar literariamente (talvez com excepção do já esquecido "O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana" e mesmo esse, por razões minhas, que o leitor também tem direito a voto e a veto).






A Porrada

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Mário de Carvalho


     — Olhe, para ser franca, podia usar o espelho do quarto de vestir e deixar-me mais espaço, está bem? Mas que é que você traz posto? Vai jantar assim?
     Gonçalo murmurava qualquer coisa, cantarolando, sem lhe dar qualquer atenção. Estava a experimentar um blusão azul-marinho. No bolso de dentro, do lado esquerdo, um objecto tumefacto fazia descair ligeiramente o ombro.
     — Ouviu?
     Suspirou cavo, antes de responder:
     — Há que séculos ando a explicar que deves tratar-me por tu. É assim cá em casa, entre marido e mulher.
     — Mas, Gonçalo, meu querido, não dá jeito nenhum.
     — Então amocha. A minha família é mais antiga que a tua. Não somos “parvenus” do Pombal, como vocês. Vimos dos Visigodos.
     — Ach, welche Anmassend!
     — Parece mesmo parva. A exibir-se. Mostro o meu anel?
     Mas, enfim, Gonçalo lá foi pondo um blaser pelos ombros para o jantar. Carregou-lhe no vinho. Mafalda bem olhou rigidamente para o empregado, dardejando proibições. Mas o hirto Salema não podia contrariar o patrão quando ele lhe estendia o copo ou piparotava o vidro, de unha incomodada.
     — Ó Salema, saia lá por um bocadinho.
     — Sai nada!
     — Só um instante. Tenho de dizer uma coisa ao senhor.
     Enfado, enfado, mas quem é que tinha posto aquilo na parede? Era uma praia ou lá o que era?
     — Não é do quadro que eu lhe quero falar, Gonçalo. Sei lá quem pôs? A sua mãe, talvez. Estou muito preocupada é consigo.
     — Salema!
     — Não, espere. Estive a pensar… porque é que você não compra um cavalo e faz um bocado de tourada como toda a gente? Ou vai para o grupo de forcados?
     — Mas tu queres pôr-me a levar cornadas, aos trinta e cinco anos?
     — Sempre era outra dignidade…
     — Digno era fazer voluntariado como as outras e levar embrulhos aos necessitados. Pensas que eu não sei como ocupas o teu tempo?
     — Gonçalo, não lhe admito!
     — E esse gaiato do ténis, ou lá o que é, o seu amiguinho, baixe os olhos quando eu passar ou ainda leva uma berlaitada que lhe desatarraxo o gorgomilo.
     — Como é que você pode pensar…
     — “Tu”! É “tu” que se diz cá na família… Desde sempre! E limpa os olhos ao guardanapo que esse rímel é descafeinado. Pronto, o tête-à-tête já deu o que tinha a dar. Salema!
     O resto do jantar decorreu em silêncio. Ligeiro rumor de vidros e roçago de metal em travessas.
     Já Gonçalo tinha o blusão vestido quando Mafalda o interceptou no corredor de cima.
     — Gonçalo, veja lá, ao menos deixe que o Salema o leve de carro.
     — Qual Salema nem meio Salema.
     — Mas fico tão preocupada.
     — Ó querida, reza. Não carregaste o oratório da bisavó cá para casa? Aquela porcaria de pau-preto que até assusta a mobília? Põe-te a rezar, pode ser que o Céu se alegre…
     Antes das escadas ainda voltou para trás. Ela pasmada.
     — E nada de telefonemas, nem nervoseiras. Dá-me o teu telemóvel.
     — Ai isso é que não dou.
     — Bom, não quero telefonemas, hem? Hoje é a primeira Quinta-Feira do mês. Para mim, já sabes, noite sagrada.
     Relance para o relógio.
     Daí a nada, ao portão, parava um Laguna, pardo, da cor da noite e dos 
gatos, meio gatos, meio escondido pelas cedros.
     — Que é da merda do Porsche?
     Gonçalo instalava-se no lugar do morto.
     — Da outra vez riscaram-mo todo. Este é o carro da minha mulher, onde a Miss leva os putos de manhã. Se o riscarem, que se lixe.
     — Já viu?
     Gonçalo tirou do bolso do blusão um objecto escuro, maleável, que parecia uma beringela alongada com um laço na ponta:
     — Não mata, mas elimina.
     — A esposa — respondeu o outro — escondeu-me a soqueira. Venho de mãos a abanar.
     — Há sempre cadeiras à mão.
     — O pior são as navalhas. As criaturas atiram ao nível da cintura e a coisa mal se vê.
     — Costas com costas, pá. Tomar sempre a iniciativa.
     Pausa. A monotonia de sombras de árvores a deslizar. Disse o do volante:
     — O Inglês telefonou. Quer três por cento.
     — Mande-o lamber sabão. Amanhã a gente fala. E acalque-me nesse prego, homem.
     Primeiro os néons num acelerar de vermelhos, depois as portadas cheias de nervuras plásticas, os acrílicos, e os calmeirões da segurança.
     — O aparelho não acusa nada, pois não? Arreda para lá a mãozinha.
     Umas galdérias dançavam na pista, uns gajos mortiços em volta, tudo muito possidónio e enjoativo.
     — É cedo — disse o amigo.
     — A minha garrafa! — Pediu Gonçalo ao balcão. Instintivamente, virou a garrafa de Blue Label antes de lhe sacar a rolha. O nível estava na marca. Não dava pretexto. Ficaram os dois ali, a olhar, num bocejo.
     Lá ao longe um dos matulões da segurança, de cabelo rapado e botas de tropa, cruzava os braços sobre os peitorais inchados, numa impassibilidade bojuda. Apareceu outro por uma porta que dizia “Exit”.
     — Estão aí os viscondes — rosnou ele, para o lado — Olhómetro!
     — Puta de vida — disse o segurança dos peitorais saídos.
     Às quatro da manhã, Gonçalo gatinhava pelas escadas, mas a carpete desprendia-se e quanto mais ele gatinhava mais descia. Em vez de se zangar ria, ria desmedidamente, entre o sentado e o estendido, picotando o ar de casquinadas finas que imbricavam umas nas outras.
     — Gonçalo, credo, você vai sujar a cama toda de sangue.
     Mafalda tentou segurá-lo por um braço, mas só conseguiu rasgar-lhe mais a camisa. Vinha sem blusão, todo desfraldado. Trazia um pé descalço, a peúga pendente.
     — Uma ambulância, o caraças. Uma ambulância o caraças. — Era ele num garganteio de coro alentejano.
     Quando Salema apareceu, de roupão, levaram-no em braços para a casa de banho. Em cima do banco, o amontoado de roupas empastadas deixava livores encarnados por todo o lado. A água do chuveiro cachoava pelo corpo agachado no antiderrapante, dissolvia emplastros de sangue, varria feridas, espiralava no ralo, em revoadas escurecidas.
     Gonçalo continuava a rir em casquinada. Só interrompia o riso de vez em quando, para um rosnido fugaz, tributo à dor. Mafalda quis saber:
     —Você não terá alguma coisa partida? Um braço, ou assim?
     — As minhas ricas quintas-feiras. As quintas-feiras da porrada. Quem mas tira, tira-me tudo.
     E ria e cantarolava. Também gemia, de vez em quando. A voz saía-lhe empastelada do álcool e dos lábios pisados.


(Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia)


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