quinta-feira, 24 de março de 2011
Um episódio
Esta edição de Luuanda, não sendo a verdadeira primeira edição do livro mítico do Autor (talvez o mais metodicamente ilegalizado e destruído pela ditadura do Estado Novo), foi a que esteve na origem do assalto policial e imediato encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, após a atribuição, por parte desta, de um prémio literário a Luandino... com base na edição original clandestina de 1963.
Do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (vol. VI, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2001):
«[...] Preso em 1961 por alegadas ligações ao MPLA, foi em 1963 desterrado para o Tarrafal, Cabo Verde, donde voltou a Lisboa apenas em 1972 para aqui viver em liberdade condicional e [com] residência fixa, regressando a Angola em 1975. [...]»
Referenciado exemplarmente em Livros Proibidos no Estado Novo, Assembleia da República, Lisboa, 2005.
Quanto a Joaquim Paço d’Arcos, na altura presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Escritores, vem no seu texto tornado público tentar limpar-se de, juntamente com Luís Forjaz Trigueiros, não ter sido solidário com a atribuição de um prémio literário que, reconhecia-o ele próprio, servia nomeadamente para «[...] no instante em que [...] era anunciado as agências telegráficas estrangeiras comunica[rem] para o mundo, em telegramas redigidos em inglês e francês, [...] ter a Sociedade Portuguesa de Escritores acabado de atribuir o Grande Prémio de Novelística a um preso condenado a catorze anos de prisão por actividades subversivas. [...]»
Manuel Mendes – o exemplar Manuel Mendes! –, um dos destinatários das ofertas que Paço d’Arcos fez do seu “documento”, respondeu-lhe assim, com as duas mãos carregadas de pedras:
«Ex.mo Senhor
Joaquim Paço d’Arcos
Ex.mo Senhor:
O meu primeiro impulso foi devolver-lhe, indignadamente, o pasquim que teve o atrevimento de me enviar, o que desde logo considerei como insultuoso. Todavia quis reflectir, ponderar nas minhas razões, evitando obedecer a movimento acaso inconsiderado, mas tentei ler segunda vez essa protérvia e não consegui: repugnou-me. V. Ex.cia devia, como as ninfas de Camões, tapar ao menos com um ligeiro cendal as pudibundas partes. É indecoroso o que exibe.
No seu acrisolado patriotismo – Heróis do mar!... –, V. Ex.cia mistura, desavergonhadamente, a Sociedade Transzambezia Railways, de que é mui prestante delegado do Governo, com a Companhia Portuguesa de Escritores, a que presidiu com tão fina elegância mundana. Tenha juízo e não ande a fazer dos outros parvos.
Todos sabemos – e nas dores do espírito e da carne – que tal insolência só é possível a coberto da censura. Sem ela, estaria V. Ex.cia caladinho como um rato. Abotoe a braguilha, para decoro nosso. Lições de patriotismo, não está V. Ex.cia em condições de as dar, mas antes de as receber, se pode em verdade entendê-las. Era o que nos faltava. Medite, por exemplo, como se comportou com a guerra da Argélia o Sartre, e os restantes dos cento e dez intelectuais franceses que ousaram protestar como lhes competia. Mas isso é gente de coluna vertebral direita e com os atributos da virilidade no seu lugar. A guerra dá para morrer – não há horror maior! –, mas dá também a uns tantos para ganhar alegremente a vidinha – não há infâmia que se lhe compare! Tenha pelo menos uns laivos, já não digo de pudor, mas de cautela, e nunca mais se atreva a estender a mão
a quem ofendeu e das veras da alma o detesta
Lisboa, 20 de Junho de 1965
Manuel Mendes»
Notável. E ainda hoje um modelo de verticalidade
Paulo da Costa Domingos no seu blog "Frenesi Loja - livros antigos & novos, raros & esgotados"
( http://frenesilivros.blogspot.com/ )
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